Acessar o conteúdo principal
RFI Convida

"Eu trabalho dentro da perspectiva da precariedade humana", diz Marcello Quintanilha, premiado em Angoulême

Publicado em:

O brasileiro Marcello Quintanilha é um dos principais autores de histórias em quadrinho na atualidade. Em 2022, ele foi laureado com o prestigioso Fauve D’Or, o prêmio concedido pelo Festival Internacional de Histórias em Quadrinhos de Angoulême para o melhor álbum do ano. Em entrevista à RFI nesta na quinta-feira (26), durante o evento na França, Quintanilha falou sobre a construção de seus personagens, suas influências e sobre a cena dos quadrinhos no Brasil.

O autor de histórias em quadrinhos Marcello Quintanilla, em Angoulême, em 26 de janeiro de 2023.
O autor de histórias em quadrinhos Marcello Quintanilla, em Angoulême, em 26 de janeiro de 2023. © Ana Carolina Peliz - RFI
Publicidade

Ana Carolina Peliz, enviada especial da RFI à Angoulême

RFI: Em 2022 você ganhou o Fauve d’Or por "Escuta, formosa Márcia". Como foi o ano depois do prêmio?

Marcello Quintanilha: Foi realmente incrível! É um sentimento muito positivo, porque minhas histórias são feitas sempre dentro da perspectiva da cultura brasileira. Minhas referências sempre vêm do Brasil, daquilo que me constituiu como pessoa. Então, quando você recebe um prêmio como o de Angoulême, que é o principal prêmio de quadrinhos na Europa, é fantástico, porque isso pressupõe que não necessariamente as pessoas precisam estar familiarizadas com a cultura brasileira ou com a sociedade brasileira para se identificar com personagens como os meus. Eu acho que meus personagens têm uma existência muito mais humana, num sentido muito mais universal que somente dentro da perspectiva brasileira. 

No álbum "Escuta, formosa Márcia", você conta a história de uma mãe moradora de uma favela, cuja filha se envolve com o crime organizado. Como é entrar na pele de pessoas tão diferentes de você e falar com legitimidade de problemas que não são seus?  

Eu não faço a menor ideia, porque eu nunca trabalho dentro da perspectiva do gênero. Eu nunca penso se os meus personagens vão ser mulheres, se vão ser homens. As personagens se impõem por elas mesmas. Eu não sei o que é o universo feminino, porque eu não sei o que é o universo masculino. Eu sempre tive muitas dificuldades com essas coisas, mas eu talvez tenha uma vaga ideia do que é o universo do ser humano.

E sempre que eu trabalho os personagens, eu trabalho dentro da dentro da perspectiva da precariedade da condição humana, porque todos nós compartilhamos exatamente a mesma condição, a mesma precariedade. A perspectiva humana é muito, muito precária. Ninguém pode se considerar salvo em nenhum momento ou situação. O nosso futuro é sempre incerto.

Nós nunca temos realmente o controle das nossas próprias vidas. Então, eu acho que por esse aspecto eu acabo falando com muitas pessoas, muito mais do que do que assumindo o características que podem ser determinadas pelas condições de gênero.

Um ponto em comum nos seus quadrinhos é o olhar social que existe em todos eles.

Como poderia não haver? Na verdade, acho que as questões sociais no Brasil determinam a forma como as pessoas se comportam. Isso tem impacto significativo na vida das pessoas. Os personagens estão condicionados a isso sempre que você está inserido nessa dimensão do trabalho, tal e como ele é processado no Brasil. Você inevitavelmente está ligado a essa perspectiva social, que te coloca dentro de uma situação em que você vai ser obrigado a tomar decisões que correspondem ao papel que você precisa exercer dentro de sua perspectiva de mundo.

Você acha que as histórias em quadrinhos têm esse papel social? Especialmente as brasileiras?

Todas as artes têm um papel social. Sobre o quadrinho brasileiro, eu acho que é simplesmente o resultado do desenvolvimento que o quadrinho está tendo no Brasil nos últimos anos. Ele tem se desenvolvido dentro dos critérios de proposições autorais, muito mais do que dentro dos critérios de uma indústria que absorva desenhistas ou roteiristas como profissionais.

O quadrinho no Brasil está se desenvolvendo de uma forma muito mais artística e autoral. Provavelmente, isso faz com que os trabalhos acabem adquirindo uma relevância que vai além do mero entretenimento.

Você acha que os quadrinhos têm um papel importante na popularização da literatura? 

Eu não vejo a literatura como algo elitista. Nunca vi a literatura como algo elitista. Nem do ponto de vista do que está escrito, nem do ponto de vista das pessoas que a fizeram. Que os quadrinhos sejam uma porta de acesso à literatura, o contrário também é verdade: a literatura também pode ser uma porta de acesso aos quadrinhos. 

Mas não foram só os quadrinhos que lhe influenciaram na sua construção como autor. Quais são suas outras influências? 

O cinema. O neorrealismo italiano é uma referência sempre presente, a maneira que alguns diretores tinham de derrubar a parede entre realidade e ficção, como no caso de Rossellini, que era alguém que produzia imagens que ele gravava em segredo, por exemplo, da ocupação alemã na Itália, na época da Segunda Guerra Mundial, e introduzia essas imagens reais dentro de histórias ficcionais. É algo que é realmente incrível e fascinante. Muitas das minhas histórias estão pensadas para recriar a atmosfera de muitos desses filmes. 

Por que você usou o universo das favelas na sua história? 

Se tiramos a história da realidade das favelas e transcrevemos para o universo da classe média, a história seria exatamente a mesma. É porque eu me interesso muito pelo aspecto histórico desse tipo de comunidade. Elas são o resultado de um processo político que não contemplou a inclusão de todos os membros da sociedade brasileira dentro de todos os requisitos da cidadania. É um fato. Não fomos capazes de fazer isso. Precisamos ser capazes de fazer isso. 

Este ano, houve uma grande polêmica em torno do quadrinista francês Bastien Vivès, que levou ao cancelamento da exposição sobre a obra do autor, devido a denúncias de banalização da pedofilia. Isso gerou reação entre as autoras francesas, que denunciaram o machismo no mundo das histórias em quadrinhos. Você acha que a questão da representatividade nas HQs poderia ser melhorada? 

Isso está mudando. Mas, na verdade, não só os quadrinhos eram um universo muito masculino. A sociedade como um todo sempre é extremamente masculina no campo decisório. Os quadrinhos eram um resultado de uma sociedade que se constituiu assim. Mas isso está com os dias contados, não somente no campo dos quadrinhos.

A sociedade como um todo está se abrindo de uma forma que eu considero irreversível. Toda essa coisa do patriarcado e tudo isso não vai perdurar para sempre. As pessoas, cada vez mais, vão tomando consciência da importância das suas escolhas e daquilo que elas querem para suas próprias vidas. É um movimento inexorável da humanidade.                                                  

 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.