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Rendez-vous cultural

Batutas em Paris: a turnê europeia que mudou a música brasileira e foi alvo de racismo em 1922

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Em fevereiro de 1922, sete músicos brasileiros desembarcavam no porto de Bordeaux, sudoeste da França. O destino do grupo era Paris, a badalada capital francesa que vivia seus anos mais loucos após o final da Primeira Guerra Mundial. Pixinguinha, Donga, entre outros batutas, fizeram apresentações durante seis meses no que é considerada a primeira turnê europeia de um grupo de música popular brasileira. O evento, no entanto, não teve a mesma recepção no Brasil, onde a imprensa publicou críticas racistas de quem não aceitava a música popular tocada por negros como imagem da cultura de seu país.

O grupo Oito Batutas no ano de sua formação, em 1919. Da esquerda para a direita: Jacob Palmieri, Donga, José Alves, Nelson Alves, Raul Palmieri, Luís de Oliveira, China e Pixinguinha.
O grupo Oito Batutas no ano de sua formação, em 1919. Da esquerda para a direita: Jacob Palmieri, Donga, José Alves, Nelson Alves, Raul Palmieri, Luís de Oliveira, China e Pixinguinha. © Acervo IMS
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O sucesso dessa viagem, que completa cem anos ainda pouco conhecida, foi fundamental para o desenvolvimento do choro e do maxixe no Brasil, e mudou a carreira de Pixinguinha.

A história começa no subsolo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde os bailes do Cabaré Assyrio eram animados pelo grupo Oito Batutas, que tinha entre seus músicos o jovem Pixinguinha e Donga. Com seus maxixes, choros e sambas, a banda conquistou a elite carioca. E chamou a atenção de um bailarino brasileiro que vivia na França, Antonio Lopes de Amorim Diniz, conhecido como Duque.

“O Duque ficou encantando com o que ele ouviu. E o Duque valorizava muito a cultura brasileira, tanto que ele foi o grande divulgador do maxixe [nos bailes de Paris]”, explica Andrea Wanderley, editora do projeto Brasiliana Fotógrafica.

Desse encontro, surge a ideia de levar o grupo para uma turnê na capital francesa, sedenta pelo exotismo na música e na dança e aberta às novas sonoridades. Para isso, Duque vai conseguir que o empresário Arnaldo Guinle, representante de uma das famílias mais ricas do Brasil à época, custeie a turnê, explica a pesquisadora do Instituto Moreira Salles.

O grupo de sete músicos –após a desistência de seu baterista J. Tomás-- embarca no transatlântico Massília rumo à França, para uma turnê que deveria durar um mês no cabaré Shéherazade, em Paris.

Sucesso na França, racismo na imprensa brasileira

Com o sucesso na capital, a estadia do grupo é prolongada e eles se apresentam ao longo de seis meses em Paris. Em abril, as páginas do jornal Figaro anunciavam o show do grupo “Les Batutas”, “orquestra brasileira, original, extraordinária e de uma alegria endiabrada, única no mundo”.

O interesse internacional pela música popular brasileira e pelo grupo dos Batutas não foi suficiente para que parte da imprensa no Brasil elogiasse a turnê. Ao contrário, o grupo foi alvo de textos racistas.

“Houve uma gritaria espetacular não só na imprensa brasileira como no Congresso Nacional. “Como é que vamos ser representados por esses crioulos tocando essas músicas popularescas?””, lembra o produtor musical Didu Nogueira, criador do projeto “Baú do Donga”, que retoma a carreira do homem que inventou o samba.

Pouco mais de trinta anos após a Abolição da Escravidão, parte da elite brasileira não aceitava ter a imagem nacional retratada na Cidade Luz por uma música que não escondia sua ascendência africana.

Nas páginas do Diário de Pernambuco, um cronista escreve: “Não sei se a coisa é para rir ou para chorar. Seja como for, o boulevard vai se ocupar de nós. Não do Brasil de Arthur Napoleão, de Osvaldo Cruz, de Rui Barbosa, de Oliveira Lima, não do Brasil expoente, do Brasil elite, mas do Brasil pernóstico, negróide e ridículo e de que la chanson oportunamente tomará conta”.

O texto resgatado por Andrea Wanderley em sua pesquisa mostra um racismo desavergonhado presente nos jornais da época. No entanto, a jornalista lembra que havia também artigos de defesa dos Batutas, mostrando uma disputa cultura que estava por trás da defesa da arte brasileira feita pela Semana de Arte Moderna de 1922.

Paris e seu caldeirão cultural

Tocando nos cabarés de Paris, os Batutas tiveram contato com outros tipos de música e, mais especificamente com diferentes bandas de jazz norte-americanas que animavam os Anos Loucos da cidade.

“Neste período, o governo norte-americano patrocinava quatro bandas de jazz na cidade. Em uma das viagens do Arnaldo Guinle para Paris, ele levou Pixinguinha a um clube desse e, encantado pelo saxofone, pergunta se ele seria capaz de tocar aquele instrumento”, conta Nogueira.

É nessa turnê que Pixinguinha ganha seu primeiro saxofone, instrumento que o acompanhará para a vida e será sua principal ferramenta no final da carreira.

A influência dos meses em Paris será sentida na música brasileira, com a incorporação de novos instrumentos e sonoridades, explica o violonista Jorge Simas, diretor musical do espetáculo "Os Oito Batutas e os Outros Batutas".

“Na volta dos Batutas para o Brasil, o saxofone, o banjo, que são instrumentos muito característicos do [jazz] Dixieland tocado pelas orquestras de foxtote daquela época começaram assimilar um sotaque da nossa música, e o Pixinguinha teve grande importância nisso”, afirma Simas.

Após a turnê parisiense, o grupo Oito Batutas volta ao Brasil com mais metais e Pixinguinha tocando saxofone. Na imagem de 1923, Sebastião Cirino (trompete/piston), Euclides Virgulino (bateria), Pixinguinha (saxofone), Fausto Mozart Corrêa (piano), José Monteiro (violão e banjo), José Batista Paraíso (saxofone) e Esmerino Cardoso (trombone de vara)
Após a turnê parisiense, o grupo Oito Batutas volta ao Brasil com mais metais e Pixinguinha tocando saxofone. Na imagem de 1923, Sebastião Cirino (trompete/piston), Euclides Virgulino (bateria), Pixinguinha (saxofone), Fausto Mozart Corrêa (piano), José Monteiro (violão e banjo), José Batista Paraíso (saxofone) e Esmerino Cardoso (trombone de vara) © Acervo IMS

Ele destaca que as fotos do grupo Oito Batutas após a turnê mostram um grupo muito mais parecido com uma jazz band. “Há a presença de mais metais, e fizeram isso tocando música brasileira, em uma adaptação para o maxixe, para o samba e o para o choro.”

Em um estudo sobre esse período, o antropólogo Rafael Menezes Bastos, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, conclui que “foi na Cidade Luz dos anos 20 do século passado - cidade mundial (capital cultural do mundo, para as elites brasileiras), sede de um universo de encontros musicais internacionais (e plurilocais) de grandes dimensões - que a musicalidade d'Os Batutas pôde se desenvolver na direção da invenção de uma brasilidade musical que somente na década seguinte seria consagrada”.

Cem anos depois dessa turnê francesa, a viagem ainda é pouco conhecida. Neste ano, o espetáculo Oito Batutas e Outros Batutas, dirigido por Simas e produzido por Nogueira, relembrou nos palcos do Sesc de São Paulo parte da trajetória. O projeto, no entanto, segue em busca de outras oportunidades para ampliar o resgate dessa história.

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