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Radar econômico

Rejeição ao primeiro Atacadão na França evidencia limites do atacarejo em um país rico

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Depois de ser obrigado a abandonar o projeto de instalação do primeiro Atacadão na França, planejado para a cidade de Sevran, o Grupo Carrefour busca outro município disposto a abrigar o atacarejo no país. Apesar da promessa de preços de 10 a 15% mais baixos, a marca – que faz sucesso no Brasil – encontrou resistência da prefeitura e dos moradores de uma das cidades com maior índice de pobreza da França.

Carrefour de Sevran seria transformado no primeiro Atacadão da França, mas prefeitura rejeitou o projeto.
Carrefour de Sevran seria transformado no primeiro Atacadão da França, mas prefeitura rejeitou o projeto. © RFI/ Lúcia Müzell
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Temendo impacto no comércio local e, sobretudo, rejeitando a estigmatização como “cidade pobre”, o prefeito de Sevran promoveu desde janeiro uma campanha contra a chegada do Atacadão. No início de março, o Carrefour decidiu abrir mão do projeto, que seria instalado em um hipermercado do grupo localizado em um bairro onde a concentração de população imigrante chega a 42%.

No local, a reportagem RFI ouviu de moradores que “o Atacadão não era bem-vindo” e que “estamos cansados da etiqueta de pobres”. “Não é porque somos pobres que precisamos de uma loja como essa”, disse uma senhora, afirmando ter dado “total apoio” ao abaixo-assinado promovido pelo prefeito de esquerda Stéphane Blanchet.

Segundo um levantamento do Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos (Insee), em 2014, 31,4% dos habitantes da cidade viviam abaixo da linha da pobreza.

“Estamos acostumados com o nosso Carrefour e não queremos nada pior”, comentou uma idosa cliente do hipermercado. “Sem falar na poluição, já que essa loja atrairia mais carros da região para cá”, argumentou uma aposentada que mora há quase 50 anos em Sevran.  

Em nota, o grupo informa que “continua em fase de estudos de diferentes locais” e “avança na direção de várias outras pistas, em contato com as prefeituras envolvidas”. A tendência é que estejam na mira cidades populares e com crescimento demográfico – ou seja, com bastante famílias –, além de possuírem uma clientela intermediária de profissionais que atuam em restaurantes, hotelaria e turismo, apontaram especialistas ouvidos pela RFI.

Mas a primeira tentativa frustrada evidencia que a missão será mais difícil do que o previsto e o fracasso pode se repetir, na avaliação do professor de Economia Philippe Moati, cofundador do Observatório da Sociedade e Consumo (ObSoCo). “É possível, sim. Talvez desta vez eles tenham cometido alguns errinhos, e isso é frequente no varejo, quando querem testar um novo conceito: eles pegam uma loja que não anda muito bem e tentam mudar, com uma nova marca”, explica. “Essa fórmula do Atacadão, voltada para clientes particulares, nunca foi feita na França. Temos a americana Costco, que existe há 5 anos e é focada na clientela profissional – e mesmo assim, não conseguiu passar de uma única loja em todo o país.”

Preocupação com a qualidade e apresentação dos produtos

Uma série de especificidades francesas explicam essa resistência, a começar pelo apego cultural à gastronomia. O segredo dos atacarejos é oferecer preço baixo, à condição que o cliente compre em grandes quantidades. Mas como diz o ditado, come-se também com os olhos e ver os produtos apresentados em caixas empilhadas, como no Atacadão, pode provocar rejeição, afirma a economista Pascale Hebel, especialista em antecipação de tendências de consumo na consultoria C-Ways.

“Nós somos tão ligados à qualidade, ao gosto das coisas e, cada vez mais, aos produtos mais naturais, inclusive em períodos difíceis como o atual, que assim que a crise vai embora, o modelo baratão fica de lado. Para que ele continue, vai precisar que ele ofereça preços baixos, mas também bons produtos”, salienta. “A categoria da população mais modesta também é como as outras: quer alimentos com qualidade – e essa é a dificuldade para este modelo no mercado francês.”

Atacadão de Santa Maria, no Rio Grande do Sul: modelo do atacarejo, que oferece preços de atacado para clientes particulares e profissionais, se popularizou no Brasil.
Atacadão de Santa Maria, no Rio Grande do Sul: modelo do atacarejo, que oferece preços de atacado para clientes particulares e profissionais, se popularizou no Brasil. © Wikipedia/ Creative Commons CC0 1.0 Universal (CC0 1.0) Public Domain Dedication

Outro empecilho é que o francês se acostumou a consumir produtos variados no dia a dia e, no atacarejo, a paleta de opções é reduzida. Hebel observa que, tradicionalmente, hipermercados com essa proposta têm facilidade de se expandir durante períodos de crise, como o atual. Mas, para ela, o timing para o Atacadão na França – anunciado em novembro de 2022 pelo CEO do grupo, Alexandre Bompard –, já começa a passar.

“A necessidade do modelo barato está acontecendo agora na França, há seis meses. A inflação alimentar chegou a 16%. Eles teriam de estar implantados antes”, destaca a consultora. “O Lidl, o Aldi e o Netto são modelos que estão funcionando muito bem porque, neste momento, as dificuldades para os franceses conseguirem comer de fato aumentaram. Mas quanto mais o Carrefour esperar, menos o contexto será favorável para este tipo de mercado, já que a expectativa é termos uma queda da inflação alimentar no último semestre de 2023”, pontua Hebel.  

Dois modelos de consumo

Philippe Moati chama a atenção para mais uma barreira, essa mais estrutural, que ilustra um paradoxo entre dois modelos de consumo que convivem nos países ricos: o modelo Atacadão vai no sentido oposto dos objetivos estratégicos dos países desenvolvidos hoje, de reduzir o consumo e privilegiar a compra de proximidade, em nome de objetivos ambientais. Entretanto, para a população de baixa renda, a prioridade continua a ser a variável preço, ressalta o professor.

“Não tenho certeza de que se fizessem uma pesquisa junto aos moradores dessas zonas periurbanas, não haveria abertura para um hipermercado assim. E isso simboliza as fraturas que temos na sociedade dos países ricos, entre uma elite militante que pede uma aceleração da transição ecológica, e essa outra parte da população, mais embaixo na escala social, que ainda está apegada a este mundo considerado do passado, consumista, e que tem dificuldade para conseguir manter um nível de vida que eles querem. São duas visões do mundo que se opõem", afirma.

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