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Planeta Verde

Por que a rastreabilidade da pecuária brasileira ainda deixa tanto a desejar?

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Nada menos do que 75% do desmatamento da Amazônia ocorre para abrir espaço para pasto para a pecuária – mas, mesmo assim, o Brasil ainda patina para melhorar a rastreabilidade dos rebanhos, uma ferramenta crucial para combater a ilegalidade e manter a floresta em pé.

Brasil ainda patina para melhorar a rastreabilidade dos rebanhos, uma ferramenta crucial para combater a ilegalidade e manter a floresta em pé.
Brasil ainda patina para melhorar a rastreabilidade dos rebanhos, uma ferramenta crucial para combater a ilegalidade e manter a floresta em pé. ASSOCIATED PRESS - Andre Penner
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Na ausência de um monitoramento federal e estadual eficientes, os frigoríficos brasileiros e os varejistas se mobilizam para encontrar soluções e enfrentarem o aumento da pressão internacional contra o chamado “desmatamento importado”. Os resultados, porém, ainda estão distantes do ideal. 

Os recordes de devastação e queimadas na Amazônia acentuaram a sensibilização dos consumidores europeus quanto à origem dos produtos que levam à mesa. Em junho, a União Europeia deu um primeiro passo para proibir a importação de carne bovina, soja e outros produtos originados em áreas desmatadas.

Já faz mais de 20 anos que o bloco aplica a rastreabilidade da cadeia animal, com a obrigação de conter, na etiqueta das bandejas, informações quanto ao local de nascimento, de engorda e de abate dos bovinos, acessíveis por meio de um código QR.

Alta tecnologia para monitorar dimensões gigantescas

Desde 2009, o Brasil possui um sistema oficial semelhante, graças a um acordo entre os principais atores do setor e o Ministério Público Federal. Entretanto, o desafio é bem mais complexo – a começar pelo peso da agropecuária para a economia do país (26,6% do PIB, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, dos quais cerca de um terço vem da pecuária) e o tamanho das áreas a serem controladas. São 50 milhões de hectares em jogo, que necessitam investimentos altos em tecnologia de monitoramento de rebanhos. O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina – são 200 milhões de animais.

Desde 2009, o Brasil possui um sistema oficial de rastreamento, mas o cumprimento é deficiente.
Desde 2009, o Brasil possui um sistema oficial de rastreamento, mas o cumprimento é deficiente. AFP - MAURO PIMENTEL

Pressionados pelos clientes estrangeiros, os maiores frigoríficos e seus clientes, os supermercados, colocam em prática planos voluntários cada vez mais ambiciosos para controlar toda a cadeia. Diversas iniciativas aliando geomonitoramento e referenciamento e, cada vez mais, block chain, estão em curso para identificar não só o avanço do gado em áreas desmatadas, como invasões de terras indígenas, unidades de conservação ambiental e violações dos direitos humanos, além de aumentar a transparência. As ferramentas, portanto, existem – mas, em geral, se limitam à etapa final do processo produtivo.

É por isso que os grandes grupos continuam a ser alvo de denúncias no Brasil e no exterior – o grupo Casino, dono do Pão de Açúcar, está sendo processado na França por não cumprir o seu “dever de vigilância” sobre toda a cadeia de produtos que põe à venda.

Porta aberta para irregularidades

O maior problema é que, no Brasil, o número de etapas intermediárias entre a fazenda e as prateleiras pode ser extenso, o que abre a porta para irregularidades. Raramente um bezerro nasce, cresce e é abatido num mesmo lugar. Monitorar os fornecedores indiretos é o principal gargalo da rastreabilidade. 

“O grande gap está no primeiro segmento, o produtivo – desde o nascimento do animal até o engorde completo. Ele pode mudar muitas vezes de fazenda na sua fase de criação, engorda e crescimento. Ali, temos uma diversidade enorme de elos, que trazem a complexidade da cadeia”, explica Lisandro Inakake, engenheiro agrônomo e coordenador de cadeias agropecuárias responsáveis do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola). “Muitas vezes, produtores de menor porte sequer sabem que existe esse tipo de exigência na cadeia, e comercializam com negociadores que gado que acabam fazendo a ‘lavagem de gado’”, observa.  

Maior parte do desmatamento da Amazônia ocorre para dar lugar a pastagens de gado.
Maior parte do desmatamento da Amazônia ocorre para dar lugar a pastagens de gado. AFP - NELSON ALMEIDA

O Código Florestal instaurou um mecanismo importante para garantir mais transparência para a cadeia, o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Entretanto, cabe aos próprios proprietários declararem, ou não, as informações sobre as suas fazendas. Para ser efetivo, o CAR deveria ser checado e validado por órgãos ambientais em cada estado, de modo a conferir um selo de sustentabilidade à produção brasileira.

Depois de uma década, embora praticamente todos imóveis rurais tenham sido registrados, apenas 0,4% dos 6,5 milhões de cadastros foram regularizados, aponta o último relatório do Serviço Florestal Brasileiro. Conforme dados do Ipam, 65% do desmatamento em florestas públicas da Amazônia ocorreu em áreas cujo CAR era fraudado. 

Exigências para o mercado externo – não para o consumidor brasileiro

Tudo isso coloca a credibilidade da rastreabilidade brasileira em xeque. “Ainda estamos distantes de ter uma identificação individual do animal. Uma parte menor da produção é rastreada, mas é principalmente a destinada a mercados exigentes, em especial o europeu”, lamenta Inakake. A carne destinada à exportação corresponde a uma minoria de 26% da produção. “Quando a gente olha para o mercado interno, podemos dizer que temos quase nada de informação sobre a origem do gado. Você encontra em produtos de nicho, como as informações sobre a raça bovina.”

A sociedade civil brasileira tem tido um papel importante não só de alerta, como de formuladora de soluções. Recentemente, o Imaflora conseguiu, pela primeira vez, associar os principais frigoríficos e as redes de varejo em um protocolo de rastreabilidade, com participação da Abras (Associação Brasileira de Supermercados). O programa está conseguindo, por enquanto no papel, unificar os sistemas de monitoramento do gado.

Entretanto, este trabalho ainda se restringe a um número limitado de participantes. “Nós estimamos que existam, na Amazônia, em torno de 250 unidades de negócio de bovinos, incluindo abate e frigoríficos. Um pouco mais de 100 deles possui compromissos de eliminar o desmatamento da cadeia – e eles representam mais ou menos 70% da estimativa de produção de carne na Amazônia”, salienta Inakake. “É relevante. Mas as outras cerca de 150 unidades de produção não têm compromisso nenhum.”

Para saber mais, ouça o podcast com a entrevista completa

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