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Planeta Verde

Seca, incêndios, tempestades: depois de ‘ver para crer’, consciência ambiental cresce na França

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Picos de calor mais intensos e próximos, incêndios florestais descontrolados, tempestades devastadoras, prejuízos agrícolas, racionamento de água. A França chega ao fim de um verão histórico, em que vários recordes meteorológicos foram batidos e as consequências das mudanças do clima se tornaram mais visíveis. A sequência de fenômenos extremos levou a conscientização ambiental a aumentar no país – mas isso não significa que todos estejam mais dispostos a mudar de hábitos para proteger o planeta.

Avião apaga incêndio em Belin-Beliet, na Girona francesa, a região que mais sofreu com o fogo neste verão (10/08/2022).
Avião apaga incêndio em Belin-Beliet, na Girona francesa, a região que mais sofreu com o fogo neste verão (10/08/2022). AFP - PHILIPPE LOPEZ
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Lúcia Müzell, da RFI

As paisagens amarronzadas pela seca tomaram conta de boa parte do país: em dois meses, a França teve 33 dias de calor além dos padrões. Foi o segundo verão mais quente já registrado.

Regiões como a Bretanha, acostumada a uma estação amena e chuvosa, registraram as temperaturas mais altas da história. Trinta mil hectares de florestas viraram fumaça, inclusive em partes do país onde os incêndios florestais não ocorriam.

O verão ainda não terminou, mas diferentes pesquisas já mostram um efeito “ver para crer” no país – a consciência ambiental dos franceses cresceu nesses últimos dois meses. Uma delas, do instituto BVA, indica que 21% da população disse ter entendido que as mudanças climáticas já atingem o país – que se somam a outros 66% que já haviam entendido isso antes. Em outra sondagem, da Odoxa, 71% das pessoas declararam que, depois deste verão, temem ser pessoalmente atingidas pelas alterações do clima.

O economista ambiental Matthieu Glachant avalia que haverá um antes e um depois do verão de 2022. "Eu acho que foi importante o que aconteceu porque, do nada, a mudança climática se transformou em uma experiência pessoal. Há muito tempo, conhecemos os relatórios do IPCC que nos alertavam sobre tudo isso – até que chegamos no momento em que as previsões se realizaram diante dos nossos olhos”, observa. "Acho que isso provocará um verdadeiro impacto nos cidadãos e, por consequência, nos políticos."

“Não conseguia pensar em outra coisa"

E foi em plenas férias que os franceses se depararam com essa nova realidade que, segundo os climatologistas, tende a se instalar nos próximos anos. O aumento do calor já transforma o Mediterrâneo em um mar tropical.

“É muito preocupante. Já faz tempo que eu tenho uma consciência sobre o clima. Mas esse verão, com essas grandes secas e incêndios, foi horrível. Foi muito pesado para mim”, conta o desenvolvedor Antoine B., 38 anos, que dividiu as férias entre um período no norte e outro no sul do país. "Falo sinceramente: eu só pensava nisso. Com aquele calor o tempo todo, a gente percebe que precisa realmente mudar as coisas.”

Crianças caminham no leito do rio Galardi seco em Ascain, sudoeste de França (12/07/2022)
Crianças caminham no leito do rio Galardi seco em Ascain, sudoeste de França (12/07/2022) AP - Bob Edme

A preocupação com o planeta leva Antoine a recusar, cada vez mais, confortos como pegar avião ou ligar o ar condicionado, para não “piorar ainda mais as coisas". "Na empresa, eu não consigo cortar o ar condicionado, mas no carro eu só ando de vidros abertos, por mais quente que esteja la fora”, aponta. “Acho que me tornei exagerado, aquela pessoa chata que vai dizer para o outro não andar de avião porque polui. Mas eu acho que chegamos num ponto em que é preciso ser exagerado, porque a mudança do clima está exagerada.”

Reações como a dele, entretanto, ainda não são a regra. Entre estar mais consciente e começar a agir, ainda existe um fosso: apenas 41% dos entrevistados pela BVA têm a intenção de aumentar as ações em favor do planeta. Isso pode significar hábitos como usar menos carro, comer menos carne ou aumentar a reciclagem do lixo.

"O que vemos muito claramente nos estudos, e há muito tempo, é que apenas o fato de ‘ver’ um risco não é suficiente para causar esse efeito de ação. Visualizar chama a atenção, mas para gerar ação é preciso não só estar informado sobre o que é possível fazer, como o que cada categoria de indivíduos pode fazer”, explica o psicólogo social especialista em riscos ambientais Oscar Navarro, da Universidade de Nimes. "Algumas ações são evocadas de maneira muito global. Para que cada um passe para o que chamamos em psicologia de ‘intenção de agir’, é preciso que elas correspondam ao que o indivíduo considera que ele pode fazer. São mecanismos complexos dos humanos: passar da intenção para a ação envolve muitas coisas." 

Uma família proprietária de oliveiras e uma vinha utiliza pás para tentar apagar as chamas perto de Le Luc, sul de França, (18/08/2021)
Uma família proprietária de oliveiras e uma vinha utiliza pás para tentar apagar as chamas perto de Le Luc, sul de França, (18/08/2021) AP - Daniel Cole

Macron de jet ski

O vácuo entre o discurso e os atos também inclui as mais altas autoridades de um país. Dias depois de os últimos incêndios florestais serem finalmente controlados no sudoeste da França, o presidente Emmanuel Macron pousou para fotos em um jet ski, durante as férias – uma diversão que consome combustível e simboliza a desconexão, cada vez mais criticada, entre as elites e medidas necessárias para diminuir o impacto humano sobre a Terra.

"O exemplo do presidente Macron é muito emblemático sobre o que acontece com a maioria dos cidadãos. Nós todos temos as nossas contradições. Até as pessoas mais sensibilizadas com o meio ambiente terão, em alguns momentos, comportamentos que serão totalmente contrários às suas opiniões”, comenta a professora de desenvolvimento sustentável Mireille Chiroleu Assouline, da Universidade Paris 1 – Sorbonne. "Macron foi um exemplo de comportamento contraditório, paradoxal, tanto em relação aos compromissos dele e da França, como aos esforços que ele está pedindo dos franceses."

O psicólogo Oscar Navarro esclarece que, mesmo aqueles que têm plena consciência sobre a realidade das mudanças climáticas pode acabar optando por não fazer a sua parte – ou por não fazer mais do que já faz.

“É preciso retirar a ideia de que a ‘negação’ é decorrente de uma má vontade. Não: ela é simplesmente um mecanismo psicológico bastante básico que temos, que nos permite nos proteger de todo o sentimento negativo gerado por uma determinada problemática, mas também pelas dificuldades de enfrentá-la e que, tipicamente, nos causa um sentimento de culpa”, afirma.

“A psicologia humana tem a particularidade de termos a tendência de nos compararmos uns aos outros o tempo todo. Isso torna as coisas mais difíceis quando, por exemplo, a gente tenta fazer as coisas direito, assumir a nossa parte de responsabilidade, mas percebemos que há tantas outras pessoas, inclusive próximas, que não fazem nada. E aí nos sentimos sempre perdedores, já que os outros continuam aproveitando enquanto eu estou me esforçando”, esclarece.

Desigualdade face à crise climática

O economista Matthieu Glachant, professor da Mines ParisTech e da London School of Economics, chama atenção para um ponto fundamental: as diferenças entre os pobres e ricos nesta conta do clima. "Tem uma palavra muito importante em mudança climática que é desigualdade. Desigualdade na contribuição à mudança climática, pelo nível de emissões. As pessoas modestas não andam de jet ski nas férias, nem pegam avião para ir para a Tunísia. E tem também a desigualdade em relação à adaptação às mudanças climáticas. Quando somos pobres, não vamos instalar ar condicionado em casa para enfrentar o calor”, frisou.

As temperaturas extremas levaram ao racionamento de água em algumas partes do país, algo bastante raro na França. Agora, em meio à crise energética que atravessa a Europa desde a guerra na Ucrânia, as empresas são incitadas a diminuir o consumo de luz. Na volta das férias, Macron advertiu que o tempo da “abundância e da despreocupação” acabou.

Essa confluência de fatores tende a levar à adoção de medidas favoráveis ao meio ambiente, como o aumento das energias renováveis. "Economizar energia e reduzir as emissões de gases de efeito estufa são dois objetivos concomitantes. Podemos, então, esperar que medidas poderão ser tomadas já nos próximos meses”, diz Chiroleu-Assouline, que também é economista. "De qualquer forma, os preços altos da energia levam a maioria dos franceses a economizar – por isso, eu lamento que o governo esteja subvencionando a queda dos preços dos combustíveis nos postos. Isso é contraprodutivo, já que naturalmente os motoristas teriam tendência a economizar combustíveis.”

A professora também chama a atenção para a importância de melhorar a eficiência das infraestruturas que já existem na França – um país rico que, até agora, não se preocupava muito com para os pequenos ou grandes desperdícios do dia a dia.

 "Percebemos só agora que há vazamentos enormes em diversas redes de abastecimento pela França. Em alguns lugares, chega a ter desperdício de 30% da água”, destaca. "Ou seja, sabíamos que elas existiam, mas como não faltava água, não tomávamos nenhuma medida pra poder consertar esses vazamentos. Como essa, há muitas medidas que podem ser tomadas: quando o sistema é tão ineficaz, fica fácil de agir.”

Adaptação na agricultura

O verão escaldante levou a prejuízos elevados na agricultura, em especial nas culturas que precisam de muita água, como frutas e legumes. Por trás dos produtores, as seguradoras estão cada vez mais preocupadas com a instabilidade do clima. O verão de 2022 também teve este efeito: alertar sobre as perdas econômicas que estão em jogo para diversos setores.

“Vamos começar a construir reservatórios de água para termos quando tivermos anos muito secos? Vamos mudar o tipo de cultura, como a do milho, que rende bastante, à condição de ter bastante água? Há muitas questões colocadas e que precisaremos resolver nos próximos anos, de adaptação”, afirma Glachant.

O psicólogo Oscar Navarro sublinha que essa sensação de já estarmos correndo contra o tempo pode acabar dificultando a aceitação, pela população, de tantas mudanças e projetos que estão por vir – não só na França.

"O que eu temo é que a gente poderia ter feito projetos com uma escala aceitável no tempo, pelas populações, a exemplo das instalações de energias renováveis. Mas agora, em plena crise, deveremos andar bem mais rápido, instalar novas infraestruras gigantescas, que serão fonte de conflitos, de tensões ou até mesmo de novos problemas ecológicos”, lamenta. "Esse é um risco que eu vejo surgir agora”, adverte.

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