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Esporte em foco

A época em que mulheres chamavam futebol feminino de show para evitar clandestinidade

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O Brasil estreia nesta segunda-feira (24) na Copa do Mundo Feminina, que acontece na Austrália e na Nova Zelândia. O primeiro jogo das brasileiras é contra a seleção do Panamá. As brasileiras estão em sua nona edição da Copa do Mundo, a última de Marta, seis vezes eleita melhor jogadora do mundo. No entanto, o futebol, considerado esporte brasileiro por excelência, por mais de quatro décadas foi proibido para as mulheres no Brasil.

Seleção feminina de futebol treina em Brisbane, durante Copa do Mundo Feminina na Austrália e na Nova Zelândia.
Seleção feminina de futebol treina em Brisbane, durante Copa do Mundo Feminina na Austrália e na Nova Zelândia. © Thais Magalhães/CBF
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Em 14 de abril de 1941, o presidente Getúlio Vargas assina um decreto que proíbe as mulheres de praticarem esportes que não fossem "adequados a sua natureza", cabendo ao Conselho Nacional de Desportos (CND) a regulamentação e a fiscalização.

No mesmo ano, o CND publica no Diário Oficial a lista de esportes proibidos para as mulheres, entre eles o futebol. A proibição acontece uma década após a regulamentação do futebol masculino no país, também sob Vargas.

"Durante o governo Vargas, há uma necessidade grande de construir uma identidade nacional para o país, associada ao futebol dos homens, ao samba. Quer-se construir a imagem de uma nação forte, uma nação viril, uma nação ágil, e isso é muito associado ao futebol masculino. E é nesse momento a proibição do futebol feminino acontece", explica a historiadora Nathália Fernandes Pessanha, que estuda esse período em seu doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF).

A interdição acontece em um período que diversos clubes de mulheres apareciam no Brasil, como o Primavera Futebol Clube e o Cassino Realengo, no Rio de Janeiro, ou o Araguari, de Minas Gerais.

"Nos anos 1940, a gente tem um crescimento muito grande da prática desse futebol. Se você pega o jornal dos esportes, por exemplo, ele narra inúmeras partidas", conta a pesquisadora. 

No entanto, uma partida disputada no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu em 1940 muda a história. "São dois times femininos do Rio de Janeiro que jogam uma partida comemorativa e isso chama muito atenção. O esporte sai do subúrbio, onde essas mulheres já eram consideradas mulheres públicas por ocuparem os espaços de trabalho, e chega a um espaço de classe média, entra num campo oficial. Isso vai gerar a reação que leva ao decreto", assinala Nathália Pessanha.

A regra será apenas revogada em 1979, e o futebol feminino, regulamentado em 1983.

Mulheres dão show com bola de futebol

Apesar das quatro décadas de proibição, nem todas as mulheres deixaram o futebol de lado. Mesmo sem poder jogar em espaços oficiais, muitas jogadoras encontraram formas de burlar a regra.

Como quem fiscaliza o futebol feminino é o conselho de esportes, o futebol passa a ser chamado de 'show' ou a fazer parte de eventos beneficentes, para fugir da alçada dos esportes.

"Nos anos 1920 e 1930, o futebol feminino aparecia nos circos, por exemplo, como um espetáculo exótico. Depois da proibição, essas mulheres encontram como forma de continuar a jogar bola o caminho do show", relata a doutoranda da UFF. "Quando a mulher chama aquela partida de show, não é um esporte, então não cabe ao CND controlar. Quando você diz que é uma partida beneficente em homenagem a fulano de tal, não é esporte, não visa a profissionalização. O jogo não invade o [que era considerado] campo masculino."

Durante sua pesquisa à imprensa da época, Nathália Pessanha encontrou uma manchete do Jornal dos Esportes dizendo "Futebol feminino é igual ao jogo do bicho. É proibido, mas todo mundo joga". 

A interdição será reiterada por um novo decreto editado em 1965. A revogação dessa regra só acontece em 1979, quase dez anos depois da realização das primeiras Copas "Clandestinas" de futebol feminino, na Itália e no México.

Marcas da proibição

Ainda que mulheres tenham persistido nos campos clandestinos, os anos de proibição brecaram o desenvolvimento do esporte e deixaram marcas na sociedade. 

"O legado subjetivo dessa proibição é muito presente, no imaginário de que a mulher não entende de futebol, não sabe jogar futebol, do assédio que a mulher sofre no estádio, na forma de violência verbal", considera Nathalia Pessanha, da UFF.

O atraso no desenvolvimento do futebol como esporte amador e profissional é o legado prático dessa interdição. 

"Se uma modalidade fica mais de 40 anos sem estrutura, sem investimento, sem patrocínio, sem visibilidade, isso vai demorar para mudar", sublinha.

Em 2007, quando a seleção feminina de futebol foi vice-campeã do Mundial, o Brasil ainda não tinha um campeonato nacional para as mulheres. Foi apenas em 2013 que a CBF criou o Brasileirão Feminino.

Uma nova esperança

Em 2019, quando a seleção brasileira foi eliminada da Copa na França, Marta fez um desabafo, lembrando o país que o futebol feminino precisava ser mais profissionalizado. A rainha do futebol afirmou, na época, que não dava para contar para sempre com uma Marta ou uma Formiga.

Quatro anos depois, Marta jogará sua última Copa do Mundo Feminina, na Oceania. Desta vez, ela estará cercada de jogadoras estreantes, com sede de proporcionara conquista mundial à rainha que inspirou a tantas.

"Acho que essa mescla de juventude com experiência é a melhor que existe", afirmou a zagueira Antônia, durante coletiva de imprensa na Austrália. "Podemos fazer um grande mundial, e podemos fazer história. Espero que a gente possa trazer essa estrela pro Brasil, por todas que já passaram e por todas que ainda vão vir", finalizou.

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