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Trabalho sob 50°C, passaportes confiscados... construtora francesa no Catar entra na mira da Justiça

Na esteira de escândalos envolvendo situações de desrespeito aos direitos humanos a trabalhadores que atuaram nas obras das instalações para a Copa do Mundo no Catar, a Vinci Construction Grands Projets, subsidiária do grupo francês Vinci, se soma agora às empresas que entraram na mira da Justiça, após uma denúncia da ONG Sherpa e de ex-funcionários por "redução à servidão" nos canteiros de obras.

Trabalhadores da QDVC (Qatari Diar/Vinci Construction Grands Projets), filial do Catar da gigante francesa de construção Vinci, preparam cimento na capital Doha, em 24 de março de 2015.
Trabalhadores da QDVC (Qatari Diar/Vinci Construction Grands Projets), filial do Catar da gigante francesa de construção Vinci, preparam cimento na capital Doha, em 24 de março de 2015. KARIM JAAAFAR AL-WATAN DOHA/AFP
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Por Lou Romeu, da France 24

A Vinci Construction Grands Projets (VCGP) foi indiciada na última quarta-feira (9), na França, por "submissão a condições de trabalho ou alojamento incompatíveis com a dignidade", "obtenção do fornecimento de pessoa em situação de vulnerabilidade ou dependência de serviços, com retribuição alheia" e "redução à servidão", termo do código penal francês para definir quando uma pessoa cuja vulnerabilidade ou estado de dependência é aparente ou conhecido do autor.

A decisão acontece sete anos após uma primeira reclamação apresentada pela Sherpa, denunciando o tratamento dado aos funcionários em três canteiros de obras da empresa no Catar, entre 2011 e 2018.

Sejam de soldadores, vigias, sejam de encanadores, mecânicos ou pedreiros, os depoimentos são unânimes. Colhidas em 2014 e 2018, e consultadas pela France 24, as declarações de 12 ex-funcionários mencionam salários muito baixos para semanas de trabalho de 66 a 77 horas, às vezes sem folga, condições de vida precárias e passaportes confiscados.

"Eu trabalhava das 6h às 18h, com uma hora de intervalo ao meio-dia", testemunha um trabalhador indiano, empregado entre dezembro de 2012 e setembro de 2015. "Trabalhávamos 8 horas e mais 3 horas extras por dia. E eu trabalhava duas sextas-feiras por mês, então 7 dias por semana", ele continua.

Esta carga horária é contrária mesmo à lei do Catar, que já é pouco protetiva e limita as horas extras semanais a 12 horas, contra os casos denunciados de 18 a 21 horas. A lei ainda prevê, no mínimo, um dia de descanso, às sextas-feiras, de acordo com a ONG Sherpa.

"Eu não tinha problemas cardíacos antes de ir para o Catar"

Um outro empregado, que trabalhou até 2017, explica que se demitiu após desenvolver problemas cardíacos. Em Lusail, nova cidade que sediará a final da Copa do Mundo, ele trabalhava no bombeamento de água a 30 metros de profundidade no canteiro de obras do metrô - onde a única ventilação era assegurada por "pequenos ventiladores de mesa" - e sem máscara de oxigênio.

“Eu não tinha problemas cardíacos antes de ir para o Catar. Comecei a ter por causa dos gases, da fumaça, do petróleo”, ele declara. De volta à Índia, ele diz que não pode mais realizar trabalhos braçais.

Tais acusações são questionadas pelo advogado da Vinci, para quem esses depoimentos não constituem prova: “Os fatos não correspondem à realidade. Cerca de 240 mil funcionários trabalharam nas obras da Vinci no Catar, e a ONG Sherpa encontrou 12 vítimas”, aponta Maître Versini-Campinchi. “Eles voltaram após o término do contrato e trabalharam por seis anos. São adultos consentidos, é difícil falar de coação nesse contexto”, ele argumenta.

No entanto, os funcionários, que são partes civis ao lado da Sherpa e do Comitê contra a Escravidão Moderna (CCEM), mencionam o confisco de seus passaportes, até pelo menos 2015, associado à proibição de mudar de empregador no Catar.

Trabalho sob o sol e mais de 45°C

Muitos ainda revelam que tiveram que pagar altas comissões junto às agências de recrutamento em seus países de origem. Enquanto a Vinci alega tê-los reembolsado sistematicamente, um dos reclamantes afirma: "Paguei 85 mil rúpias nepalesas (mais de R$ 3 mil) para vir [ao Catar]. A QDVC (filial da Vinci no Catar) nunca devolveu esse dinheiro".

Por unanimidade, eles denunciam condições de trabalho "muito duras", muitas vezes diretamente sob o sol. Um supervisor, contratado até 2017, fala de uma temperatura habitual de "45°C, às vezes 50°C", associada a uma umidade elevada, causando "dificuldades respiratórias". “Vi pessoas caírem”, ele conta.

A denúncia apresentada pela Sherpa visa não somente as condições de trabalho, mas também as condições de vida dos funcionários, alojados pela empresa em acampamentos localizados no deserto, a uma hora de carro dos canteiros de obras. Até pelo menos 2015, os quartos eram compartilhados por seis pessoas, e os banheiros, por 12 ou até 15 pessoas.

Padrões de trabalho “diferentes”

“Não é a Vinci quem decide sobre as condições de vida dos funcionários no local, mas a empresa do Catar, onde a subsidiária da Vinci é minoritária”, reage Versini-Campinchi, colocando a responsabilidade na construtora QDVC, que é 49% detida pela VCGP. “E esses trabalhadores não foram maltratados, foram tratados de forma diferente da França. Os padrões de trabalho no Catar não são os mesmos”, alega.

A Sherpa espera, no entanto, que a responsabilidade criminal da multinacional seja mantida e que um "forte sinal" lhe seja enviado. “Acreditamos que a VCGP tinha controle sobre as condições de vida e de trabalho dos funcionários”, afirma Laura Bourgeois, advogada da ONG.

“Resulta dos elementos do processo que a elaboração e aplicação das regras relativas ao recrutamento, alojamento e condições de trabalho pertenciam à VCGP. Sem contar que o gerente-geral da QDVC na época também era funcionário da VCGP. Esperamos que esta acusação envie um sinal para as multinacionais de que agora é cada vez mais difícil se esconder atrás da ideia de que o que suas subsidiárias fazem não é da sua conta”, relata Bourgeois.

Com isso, caberá à Justiça averiguar, poucos dias antes da abertura da Copa do Mundo no Catar, onde morreram 6,5 mil trabalhadores migrantes, desde a decisão, em 2010, da realização deste campeonato mundial pelo emirado, como aponta uma investigação do jornal britânico The Guardian.

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