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De 'Round 6' ao K-pop, cultura sul-coreana é novo vetor do soft power de Seul

Lançada recentemente pela Netflix, a série “Round 6” alcançou um sucesso recorde em apenas duas semanas, vista por 111 milhões de assinantes da plataforma. Sensação mundial, a produção é o ápice de uma tendência da popularização da cultura sul-coreana, que vem se tornando um importante instrumento estratégico do país asiático.

Cena de "Round 6", série sul-coreana da Netflix acompanhada por 111 milhões de assinantes da plataforma.
Cena de "Round 6", série sul-coreana da Netflix acompanhada por 111 milhões de assinantes da plataforma. YOUNGKYU PARK Netflix/AFP
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Daniella Franco, da RFI em Paris

O drama distópico “Round 6”, (“Squid Game”, título original), escrito e dirigido pelo cineasta Hwang Dong-Hyuk, trata de uma competição entre 456 candidatos desesperados e individados, dispostos a quase tudo para embolsar uma fortuna. Os jogos que os personagens disputam a cada um dos nove capítulos da série são simples brincadeiras infantis – cabo de guerra, batata frita 1,2,3 ou bola de gude – mas cada participante paga sua eliminação com a própria vida.

Clara crítica à sociedade capitalista e às desigualdades sociais, a produção conta com um cenário suntuoso, roteiros com poderosos cliffhangers, os momentos de suspense deixadas em aberto no final de cada episódio, além das ótimas atuações do elenco, como Lee Jung-jae, que interpreta o carismático protagonista da saga, Seong Gi-hun. Já a estética remete ao design de alguns videogames e atiça a curiosidade de jovens. A extrema violência de algumas cenas, que podem chocar espectadores mais sensíveis, levou muitos países a proibirem a exibição da produção a menores de 15 anos.

Nada que atrapalhe o sucesso da série. Pelo contrário: o buzz em torno da crueldade da trama só ajudou a popuralizá-la ainda mais. Nas redes sociais do mundo inteiro, a hashtag #SquidGame ou #Round6, no caso do Brasil e do Canadá, ocupam as primeiras colocações há vários dias.

Em coluna publicada pelo jornal The Korea Herald, Kim Seong-kon, professor de Literatura da Universidade Nacional de Seul, afirma que os temas e questões abordadas na série têm um apelo universal. “Assistindo a ‘Squid Games’ os espectadores se dão conta que o drama reflete, de forma pungente, os problemas da nossa sociedade”, analisa.

Para Victoria Spens, assistente de direção do Centro Cultural Coreano em Paris, encarregada de cinema e literatura, a facilidade de identificação do público com “Round 6” está principalmente na dificuldade financeira em que se encontram os personagens. “Esse é o tipo de problema pelo qual todos nós já passamos e isso diz respeito a muita gente no mundo inteiro. Sem ter nenhuma relação com origem ou nacionalidade, qualquer espectador pode sentir na pele o que vivem esses personagens”, explica.

Popularização da cultura sul-coreana

Sucesso em cerca de 90 países onde a plataforma atua – mas também na China, onde a população não tem acesso à Netflix – a série é também o exemplo do quanto a cultura sul-coreana vem se propagando mundialmente nos últimos anos.

De “Parasita” (o primeiro filme não anglófono a conquistar um Oscar, em 2020) ao K-pop (em apenas em duas semanas o grupo BTS reuniu 64 milhões de visualizações de seu novo clipe, “My Universe”), o cinema e a música, mas também a gastronomia e a língua atraem a atenção para um país que passou décadas isolado pela guerra, ditadura, crises econômicas e por sua própria posição geográfica, no sul de uma península cercada pela China e o Japão.

Resultado deste crescente interesse, o célebre dicionário de língua inglesa Oxford adicionou recentemente 26 novas palavras de origem sul-coreana em sua mais recente edição. Não por acaso, o site de aulas de idiomas online Duolingo registrou um aumento de 76% de alunos de sul-coreano no Reino Unido e 40% nos Estados Unidos, 14 dias após o lançamento da série.

“A língua e a cultura são intrinsicamente relacionadas e as grandes tendências da cultura popular e midiática têm frequentemente uma influência sobre a aprendizagem de idiomas”, reagiu um porta-voz da Duolingo, em entrevista à agência Reuters.

Para Victoria Spens, o aprendizado da língua mostra uma necessidade de imersão maior na cultura. “Para ter uma compreensão total de um drama sul-coreano podemos nos contentar com legendas, mas a familiarização com o idioma pode ajudar. No caso da K-pop, por exemplo, muita gente quer saber qual é o significado das letras das músicas, ou o que está dizendo o seu cantor preferido, e isso pode, de fato, levar ao interesse em aprender a língua coreana”, avalia.

Hallyu”: uma onda cultural

No entanto, a febre da cultura sul-coreana, ou o “hallyu”, como o fenômeno é chamado no país, não é exatamente nova. Desde o sucesso do drama policial “Old Boy”, de Park Chan-Wook, que venceu 40 prêmios entre 2003 e 2004, diversas produções vêm ultrapassando as fronteiras da Coreia do Sul e conquistando o público em todo o planeta. Os cineastas e roteiristas do país despontam, nos últimos anos, referências de gêneros como suspense, mistério e terror.

O apocalíptico “Invasão Zumbi”, de Sang-ho Yeon, brilhou nos festivais de cinema de horror e fantástico, conquistando 35 prêmios em 2016. Ainda que fadado ao circuito alternativo, o perturbador thriller “Em Chamas”, de Chang-dong Lee, impressionou o júri de Cannes em 2018 e ficou com o prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema.

Mas nem só de sangue e mistério vive o cinema sul-coreano. “Minari”, de Lee Isaac Chung, que conta a história de uma família de imigrantes da Coreia do Sul nos Estados Unidos dos anos 1980, levou 108 prêmios em 2020, como um Oscar de melhor atriz coadjuvante para Yuh-Jung Youn, além do Globo de Ouro e o Bafta de melhor filme em língua estrangeira. Também no ano passado a série de comédia romântica “Tudo Bem Não Ser Normal”, foi outro grande sucesso mundial da Netflix.

Se do lado do público há uma grande receptividade para essa onda cultural sul-coreana, outras explicações levam os habitantes desta península a recorrer a essa necessidade de criação artística. Para o cineasta francês Antoine Coppola, professor e pesquisador na Universidade de Seul, há uma espécie de reação da população do país a décadas de cercos e limites impostos por antigos ditadores e regimes.

“Há uma erupção de criatividade e de vontade de se expressar em nível cultural. Isso não ocorre apenas no cinema e na TV, mas também na música, com a K-pop, por exemplo. É uma necessidade de vingança mesmo contra uma colonização japonesa, que durou cerca de 40 anos, contra uma ditadura, que também regeu durante décadas. Então, hoje vemos o resultado dessa camada de chumbo que sufocava a Coreia do Sul e que desapareceu”, afirma, em entrevista à rádio France Culture.

Muito mais do que uma nova moda, o “hallyu” também é usado de forma estratégica pelo governo. Segundo o próprio presidente Moon Jae-in, a propagação da cultura sul-coreana é um instrumento de soft power.

“De fato, essa é uma forma de se destacar no jogo de xadrez do mundo. Afinal, a Coreia do Sul esteve durante muitos anos na sombra dos grandes países vizinhos, como a China e o Japão. Antes de despontar economicamente, nos anos 1960, esse era um dos países mais pobres do mundo. Então, efetivamente, o ‘hallyu’ é como uma onda que invade, de maneira suave, o planeta”, completa Victoria Spens.

Uma onda que deve continuar inundando o mundo. Recentemente a Netflix anunciou um plano de investimento de US$ 500 milhões para produções sul-coreanas apenas neste ano.

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