Acessar o conteúdo principal

Tragédia em Beirute é duro golpe contra economia do país e agrava pressão social, avalia especialista em Oriente Médio

Os moradores de Beirute nem digeriram ainda o choque das duas explosões que devastaram a cidade na terça-feira (4) e já são obrigados a pensar nas consequências da tragédia. Para o professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Murilo Sebe Bon Meihy, especialista em Oriente Médio, o desastre deve intensificar a dura crise econômica e financeira que o país enfrenta e a pressão social.

Duas explosões no porto de Beirute causaram uma imensa destruição e deixaram mais de 100 mortos e quatro mil feridos na terça-feira (4).
Duas explosões no porto de Beirute causaram uma imensa destruição e deixaram mais de 100 mortos e quatro mil feridos na terça-feira (4). AFP
Publicidade

Em entrevista à RFI, Meihy explica que a maioria dos alimentos importados que chega ao Líbano passa pelo porto de Beirute, que deve permanecer fechado ou ter a capacidade de funcionamento reduzida nas próximas semanas.

“A tragédia de ontem foi o mais duro golpe contra a economia do país. Esse desastre agrava a pressão social sobre o povo libanês com um possível aumento ainda mais forte sobre os preços dos alimentos”, avalia.

O Líbano está diante de uma crise econômica e financeira sem precedentes, marcada por uma desvalorização inédita da moeda nacional. Combinada à dependência do país às importações de produtos de base, o fenômeno resultou no aumento vertiginoso dos preços. No último mês de junho, a inflação chegou a 90%.

As consequências são sentidas diretamente pela população, que viu a taxa de desemprego chegar a 30%. Em abril, cerca de 50% da população libanesa chegou à linha de pobreza; mais de 20% vivem abaixo deste nível.

No início de julho, a alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, alertou que os cidadãos mais vulneráveis “correm o risco de morrer de fome devido à crise”. Comprar carne se tornou praticamente impossível para a maior parte dos libaneses. O exército se viu obrigado a retirar o produto das refeições do soldados no final do mês passado. Nas últimas semanas, o preço dos legumes começou a subir; o quilo do tomate – alimento popular da culinária libanesa – foi multiplicado por quatro.

“O Líbano possui uma economia frágil baseada na importação de recursos básicos e dolarização de preços. Com o impacto da pandemia do coronavírus, a falta de uma política contínua de infra-estrutura econômica, a incapacidade do governo em oferecer serviços básicos à população, e a pressão dos impostos sobre a frágil classe média do país ficou insustentável”, explica o professor da UFRJ.

Murilo Sebe Bon Meihy, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em Oriente Médio.
Murilo Sebe Bon Meihy, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em Oriente Médio. © Arquivo Pessoal

Consequências da crise política

Segundo o especialista em Oriente Médio, a atual crise econômica e financeira é resultado direto do falho sistema político libanês. “Apesar do agravamento da crise nos últimos meses, o país não foi capaz de organizar um sistema de representação política horizontal, com cidadania ampliada desde o fim da guerra civil vivida pelo Líbano entre 1975 e início dos anos 1990. Durante todos esses anos, elites regionais e confessionais se revezam no poder e disputam o controle do Estado libanês para se beneficiar de uma estrutura clientelista e corrupta.”

Meihy lembra que o Líbano vive um modelo econômico desigual, em que um pequeno grupo enriquece e angaria prestígio. Enquanto isso, grande parte da população vive assombrada pelo risco da queda da renda e do poder de compra da moeda nacional.

Em protesto contra esse sistema, os libaneses protagonizaram um movimento de protesto inédito no país em 2019. O pano de fundo foi uma série de medidas anunciadas pelo governo, consideradas abusivas pela população, como uma taxa à utilização de aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.

A revolta denota, no entanto, a insatisfação insuportável contra a classe política corrupta que permanece há décadas no poder. A mobilização que teve início em outubro do ano passado foi momentaneamente interrompida neste ano devido à pandemia, mas, nos últimos meses, a população voltou a ganhar as ruas.

“Certamente o poder de mobilização da população libanesa é grande, mesmo com a crise sanitária da Covid-19. Grande parte da população tem muito pouco a perder caso decida pelo enfrentamento nas ruas contra o governo. A fome e o empobrecimento generalizado são os motores dessa crise. Tudo agora depende do comportamento do atual governo libanês diante desse cenário. Historicamente o governo responde mal, com declarações dúbias, promessas vazias e violência policial nas ruas”, analisa o especialista em Oriente Médio.

De fato, a forte pressão popular conseguiu derrubar o primeiro-ministro Saad Hariri, mas o novo premiê, Hassan Diab, que assumiu em janeiro, não conseguiu até agora implementar as reformas prometidas. Segundo Meihy, as mudanças às quais anseiam o povo libanês sempre estiveram em segundo plano.

“O sistema político libanês trabalha exclusivamente para a sua própria sobrevivência e manutenção da riqueza de seus integrantes. Como exemplo disso, basta que lembremos que o ponto crítico das manifestações de 2019 contra o governo estava vinculado ao projeto de criação de mais um imposto que afetaria o poder de compra da classe média local. A sociedade civil libanesa precisa reconhecer a falência do seu modelo político e econômico, e está bem perto disso.”

Necessidade de apoio internacional

Segundo ele, se a população contar com o apoio internacional para essa mudança, o país poderá se reinventar sem a sombra da guerra civil, de 1975 a 1990. “O problema é que as ajudas internacionais, quando aparecem, se apoiam em grupos da elite política do país, e reforçam a manutenção do seu modelo político corrupto. Sauditas oferecem ajuda, mas condicionada à presença de seus aliados no poder. Iranianos seguem a mesma tendência, e isso transforma o Líbano em um palco de disputa de prestígio desses países pela liderança regional no Oriente Médio”, avalia.

Outro empecilho, segundo ele, é o apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel, que favorece a fragilidade econômica e diplomática dos países da região, principalmente do Líbano. O professor ressalta que mesmo diante das manifestações massivas que se repetem no país desde 2015, nenhuma medida de apoio foi tomada por qualquer país aliado.

“Apesar de sua enorme comunidade diaspórica em países como Estados Unidos, Brasil, Austrália, e Canadá, a ajuda internacional ao Líbano chega sempre com atraso e se concentra em áreas que não fortalecem instituições democráticas do país. Um Líbano fraco e plutocrata atende a muitos interesses no jogo político regional e internacional. O suporte unilateral dos Estados Unidos a Israel permitiu o crescimento da influência de russos e iranianos no jogo político regional do Oriente Médio. O Líbano foi novamente deixado para trás.”

No entanto, para o professor, diante da comoção internacional que as explosões em Beirute causaram, as próximas semanas podem ser decisivas. “O Líbano só pode contar com o bom senso de seus próprios cidadãos. A história recente do país nos dá pouca esperança de melhora, mas a força do povo libanês não pode ser subestimada”, conclui.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.