O hiato simbólico é terrível. Por um lado, os países europeus não param de comemorar os 70 anos do começo do fim da Alemanha nazista e da pior guerra da história da humanidade. Por outro lado, uma guerra de verdade está sendo travada no solo europeu – na Ucrânia. E quem não sabe que conflitos armados na Europa são sempre prelúdios que acabam engolfando o resto do planeta?
A Ucrânia é só um dos exemplos das ameaças que pairam sobre a paz mundial e todas as instituições criadas no final da Segunda Guerra Mundial.
O Oriente Médio inteiro, do Afeganistão à Síria e do Golfo Pérsico à Líbia - está se desintegrando numa orgia de violências bárbara – massacres de massa, genocídios e terríveis limpezas étnicas ou religiosas. A ordem imposta na região no final da Primeira Guerra Mundial – certamente injusta, colonial e ditatorial – garantia assim mesmo um mínimo de previsibilidade e de violência relativamente controlada. Hoje, essa ordem está se desmanchando rapidamente e ninguém tem a mínima idéia do que pode substituí-la.
A Europa, onde mais de 60 milhões de pessoas morreram nos conflitos entre 1914 e 1945, e que apesar da Guerra Fria conseguiu viver meio-século de paz e prosperidade, está mais uma vez afundando numa crise econômica e social generalizada. Os velhos fantasmas da extrema-direita xenófoba, populista e autoritária, com seus ranços nacionalistas agressivos estão de volta. A integração europeia, baseada nas economias abertas, no estado de direito e nos valores democráticos, protegeu os europeus até durante os piores momentos do enfrentamento entre o mundo ocidental e o império comunista soviético.
Hoje, já são muitos os que pensam que a União Européia pode implodir e que a volta dos nacionalismos exacerbados pode até provocar conflitos armados. Sem falar nas tensões entre a China e seus vizinhos, o rearmamento do Japão e a corrida armamentícia entre Pequim e Nova Déli.
Na verdade, todo o sistema das Nações Unidas, todos os grandes acordos diplomáticos e regras de direito internacional – em soma, o multilateralismo que emergiu dos campos de batalha europeus e asiáticos depois de 1945 – tinham por missão tentar conter a violência das relações entre Estados e promover regras do jogo bastante estáveis para que as populações do planeta pudessem se dedicar às artes da paz: crescimento econômico, cultura, liberdades políticas e promoção dos direitos individuais e coletivos. Mas essa grande arquitetura institucional internacional está ruindo.
A razão é simples: não há segurança, nem regras do jogo e valores universais que se sustentem sem alguém com meios suficientes e disposição para garantí-los. Nos últimos 70 anos, foram os Estados Unidos que assumiram essa função, junto com a Europa ocidental e uma certa ajuda do Japão. Só que hoje, a Europa está se desmelinguindo e os Estados Unidos de Barack Obama não estão mais a fim de pagar o preço da proteção dos valores e das regras universais. O problema é que não há lei sem polícia. E não serão nem a China, nem a Rússia e ainda menos o Brasil ou outros países emergentes que terão os meios e a vontade de manter as regras básicas da convivência internacional.
Sem um Ocidente próspero, unido e com força de vontade para defender o direito internacional e os valores de liberdade e democracia, estamos ameaçados de cair numa nova idade das trevas, com guerras cada vez mais cruentas e níveis de violência sem precedentes, externa e interna. E as principais vítimas desta nova Idade Média serão os mais fracos: as populações dos países pobres e emergentes.
Numa publicação recente, o arqueólogo americano Eric Cline conta a história do desaparecimento brusco e brutal, em poucas décadas, de todas as civilizações e grandes cidades da Idade do Bronze, dois milênios antes de Cristo, no Mediterrâneo oriental. A História demonstra, mais uma vez, que as civilizações são perecíveis quando não há mais ninguém para defendê-las.
* Alfredo Valladão é professor no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences PO)
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