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O Mundo Agora

Nova Constituição da Tunísia é a mais liberal e progressista do mundo muçulmano

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Quem disse que a primavera árabe era só primavera ? E que agora o inverno chegou com os seus frios massacres, economias arruinadas e a volta dos ditadores ? É verdade: não é todo dia que se pode celebrar uma boa notícia vinda das revoluções árabes, mas desta vez a Tunísia é um exemplo inequívoco que alguma coisa pode dar certo. A Assembléia Constituinte do país acaba de ratificar a primeira Constituição pós-revolucionária, depois de três anos de debates histéricos, assassinatos políticos, uma economia paralisada e um desemprego cada vez maior. E não é só isso. A nova Carta Magna é de longe a mais liberal e progressista de todo o mundo muçulmano. É a primeira constituição árabe que estabelece a liberdade de crença e consciência, e proíbe que alguém seja acusado de apostasia.

A Tunísia adotou nesta segunda-feira uma nova Constituição.O Presidente da Assembleia Nacional, Mustapha Ben Jaafar, o Presidente da Tunísia, Moncef Marzouki, e o primeiro-ministro, Ali Larayedh, posam para a fotografia.
A Tunísia adotou nesta segunda-feira uma nova Constituição.O Presidente da Assembleia Nacional, Mustapha Ben Jaafar, o Presidente da Tunísia, Moncef Marzouki, e o primeiro-ministro, Ali Larayedh, posam para a fotografia. REUTERS/Anis Mili
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Claro, o texto afirma que o islã é a religião do país – o que na verdade é o mínimo para uma nação de cultura muçulmana – mas pela lei, qualquer um pode ter a religião que quiser ou até ser ateu. Nada de impor a lei religiosa – a sharia – a toda a sociedade, como tentaram fazer os Irmãos Muçulmanos no Egito ou como reivindicam todos os movimentos islâmicos. Mais surpreendente ainda: o texto constitucional estabelece a igualdade entre homens e mulheres, assim como a paridade de representação nas assembléias políticas, e a liberdade de expressão e de opinião. Claro que este resultado extraordinário só foi possível porque o partido islamista Enhada que estava no poder desde as primeiras eleições livres no país, entendeu que não poderia impor a própria vontade numa sociedade dividida e que tinha que partilhar o poder.

O debate constitucional só pôde ser concluído quando os islamitas aceitaram deixar o governo nas mãos de uma equipe de tecnocratas “neutros”, cujo mandato agora é preparar novas eleições. Essa decisão não foi fácil e houve choro e ranger de dentes nas hostes do Enhada, sem falar dos grupelhos islamistas mais radicais. Foi preciso uma intervenção clara e autoritária do chefe histórico do partido para que a base mais renitente acabasse aceitando a realidade.

É que o Enhada não tinha muita alternativa. O exemplo da debacle dos Irmãos Muçulmanos no Egito, com a prisão do presidente Morsi, a violenta repressão do movimento e a instalação de um novo regime militar, bateu feio na pequena Tunísia.

Os islamitas tunisianos não estão afim de acabar nos calabouços de uma nova ditadura interna. Mas um elemento também ajudou: no mundo árabe, a Tunísia é o país que tem a maior tradição de deixar a religião fora da política. A Constituição de 1959 elaborada depois da independência já era a mais “laica” e progressista da região e as mulheres tunisianas sempre tiveram muito mais direitos do que nos outros países árabes.

Mas o elemento mais alvissareiro é o fato de que numa região onde o poder nunca foi dividido, os tunisianos conseguiram dialogar e negociar um acordo para partilhar as responsabilidades governamentais e assegurar alternâncias políticas pelo voto. Tanto os religiosos quanto os laicos, depois de muita briga e intransigência, chegaram a conclusão de que o país é de todos.

E que nem um lado nem outro pode querer esmagar o adversário. E é exatamente isso que está no coração dos revoltosos da primavera árabe: acabar com as ditaduras e o autoritarismo, e impor a proteção da lei para todos os cidadão, sem distinção de credo, raça, opinião ou gênero.

Foi da Tunísia que partiram as grandes revoluções árabes de 2011 e é na Tunísia que elas vêm se concretizar num novo quadro institucional que conseguiu aliar modernidade e tradição, o que é a própria realidade social da nação. Nada mal para um Estado pequeno e pobre, ameaçado por grupos extremistas e com vizinhos hostis.

Agora, o problema será a aplicação da nova Constituição. Foi dado o primeiro passo, mas ainda falta bastante para criar mais confiança entre os diversos grupos e partidos tunisianos e entre religiosos e liberais laicos. Mas se há um lugar onde a primavera árabe pode dar certo é pelas bandas de Cartago.

Clique acima para ouvir a crônica de política internacional de Alfredo Valladão, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris.

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