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O Mundo Agora

Mandela e Lênin, dois ícones paradoxais que se apagam - diz analista

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Quase no mesmo momento, dois grandes ícones da história moderna se apagaram: Nelson Mandela e Vladimir Illitch Lênin. Há vários meses Nelson Mandela já era só um ícone. Como pessoa ele não passava mais de um corpo agonizante. Morto e antes de ser enterrado, esse mesmo corpo será agora transportado e mostrado por todos os cantos do país. Como um santo num andor atravessando a África do Sul numa procissão que o levará até um funeral nacional. O cadáver de Lenine, embalsamado, também ficou exposto décadas a fio para a devoção de seus seguidores e a curiosidade dos turistas. Mas o seu ícone, a imensa estátua na praça de Independência em Kiev, foi sumariamente decapitada e posta abaixo por uma multidão de ucranianos querendo se ver livres da sombra inquietadora do poderoso vizinho russo. Mandela é o símbolo da libertação dos sul-africanos, vítimas do inumano regime do apartheid. O bronze de Lênin, para a grande maioria dos ucranianos, representa o imperialismo russo que desde de Catarina a Grande e seu favorito Potemkhine, passando pela União Soviética e agora por Vladimir Putin, considera que a Ucrânia só pode existir se for colônia de Moscou. 

Fotomontagem das estátuas de Vladimir Lenine, o líder da revolução russa de 1917, no centro da capital ucraniana que foi derrubada por manifestantes e do Nelson Mandela  na prisão de Groot Drakenstein, África do sul.
Fotomontagem das estátuas de Vladimir Lenine, o líder da revolução russa de 1917, no centro da capital ucraniana que foi derrubada por manifestantes e do Nelson Mandela na prisão de Groot Drakenstein, África do sul. REUTERS/Mark Wessels/REUTERS/Maks Levin
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Paradoxalmente, esses dois ícones, por meios diferentes e até antagônicos, tiveram uma função análoga nos dois países. Na verdade, tanto a África do Sul quanto a Ucrânia são nações “arco-íris”, feitas e divididas em várias comunidades, etnias, religiões. Com a chegada de Mandela ao poder, a minoria branca virou simplesmente mais uma “tribo” ao lado das várias tribos, nacionalidades ou etnias negras, e das diversas minorias de origem asiática sobretudo indianas. “Madiba” com o seu prestígio e sua sabedoria democrática realizou uma façanha: impedir que o país se afundasse num ciclo de vinganças, violências e guerra civil. Hoje, o seu bem merecido estatuto de ícone lembra a todos que ele foi realmente o refundador da República Sul-Africana e a força moral que garantia a unidade de uma nação tão dividida e desigual.

A Rússia na Ucrânia foi o elemento central que impôs pela força uma unidade nacional inexistente. O interesse do império russo pela região tinha a ver com uma das melhores terras do mundo para plantar trigo e suas enormes reservas de carvão. No século XVIII, Potemkhine não só tomou conta mas promoveu o estabelecimento de colonos vindos de várias partes do império criando um mosaico de povos e culturas, todos submetidos à mão de ferro do Kremlin. Durante a revolução russa de 1917, os ucranianos tentaram lutar pela independência nacional, antes de serem esmagados pelo jovem Exército Vermelho. E Stálin provocou deliberadamente uma penúria alimentar que matou milhões de ucranianos para acabar com qualquer veleidade independentista. Foi só depois da queda do Muro de Berlim e da implosão da União Soviética que a “revolução cor de laranja” conseguiu se desvencilhar do abraço do urso russo.

Só que os processos históricos não são simples. Durante séculos, o território ucraniano foi dividido entre impérios concorrentes, austro-húngaro, russo e até polonês. As populações da parte ocidental do país se sentem profundamente europeias, enquanto que no lado oriental a implantação de populações vindas da Rússia criaram um sentimento mais favorável ao Kremlin. Hoje, a Ucrânia, como sempre, está rasgada: uma maioria anseia em ser, finalmente, parte da Europa democrática, uma minoria ainda vê vantagens em se integrar com a Rússia, numa espécie de nova versão da União Soviética, que é o maior projeto de Vladimir Putin.

Destruir a marteladas a estátua de Lenine é uma aposta na capacidade da nação ucraniana de inventar uma nova unidade nacional, que venha de dentro, sem precisar de um ditador externo para isto. Transformar Mandela em santo também é uma maneira de rezar para que a tão diversa nação sul-africana consiga se manter unida mesmo sem um Salvador, um pai da pátria aceito por unanimidade. Só que nos dois casos não há certeza que as coisas aconteçam desta maneira. Hoje, a África do Sul democrática ainda é um país com imensos problemas internos. A crise econômica vem aumentando a fragmentação social e a violência. Um verdadeiro abismo separa o novo poder negro da ANC dos townships, as favelas miseráveis de Johannesburg ou de Pretória. De novo, a intolerância e comportamentos racistas afloram de maneira perigosa. A Ucrânia por sua vez está ameaçada de partição entre oriente e ocidente, europeístas e eslavófilos. Um país que só conseguiu existir pela pressão externa pode se desmanchar na hora de ter que decidir por si próprio. E os dois ícones, Mandela e Lenine, não estarão mais aí para segurar as pontas de seus pálidos sucessores.

 

Clique no botão acima para ouvir a crônica de política internacional de Alfredo Valladão, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris.

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