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Por que governo se recusa a mencionar 'suicídio' em PL que sinaliza mudança histórica sobre o fim de vida na França

Uma das peças legislativas mais importantes do segundo mandato de Emmanuel Macron, o projeto de lei sobre o "fim de vida" foi apresentado ao Conselho de Ministros nesta quarta-feira (10). Se for adotado pelo Parlamento, ele mudará a lei de uma forma sem precedentes. Atualmente, ela só autoriza a interrupção do tratamento em casos de pacientes considerados sem esperança. O projeto prevê que alguns pacientes sejam ajudados a tirar a própria vida, mas a palavra "suicídio" foi excluída do texto.

Uma enfermeira segura a mão de um paciente em uma unidade de cuidados paliativos no hospital de Argenteuil, nos arredores de Paris, em 22 de julho de 2013. (Foto ilustrativa)
Uma enfermeira segura a mão de um paciente em uma unidade de cuidados paliativos no hospital de Argenteuil, nos arredores de Paris, em 22 de julho de 2013. (Foto ilustrativa) AFP - FRED DUFOUR
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Após mais de um ano de trabalho, o governo francês apresentou nesta quarta-feira (10) sua versão final do projeto de lei sobre o fim da vida ao Conselho de Ministros, antes de embarcar em uma longa jornada parlamentar pela Assembleia Nacional e pelo Senado.

Em particular, o projeto de lei prevê a introdução da "ajuda para morrer", sob certas condições, para pacientes no final de suas vidas, que estejam  passando por "sofrimento físico ou psicológico" como resultado de sua doença.

O acesso a essa "assistência ativa durante a morte" é estritamente regulamentado na versão apresentada ao Palácio do Eliseu na manhã desta quarta-feira. Há cinco critérios cumulativos para ter acesso a essa solução em fim de vida:

  • o paciente deve ser maior de idade, ter nacionalidade francesa e residir na França,
  • ter pleno discernimento cognitivo (ou seja, não sofrer de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer)
  • sofrer de uma doença incurável de curto ou médio prazo com risco de vida
  • estar passando por um sofrimento que não pode ser aliviado

Uma vez atendidos esses critérios, após a emissão de um parecer médico favorável no prazo de 15 dias, um médico, uma enfermeira, um voluntário ou o próprio paciente se auto administra um produto letal. O projeto de lei apresentado nesta quarta-feira deve conter disposições mais precisas, de acordo com as solicitações do Conselho de Estado, que leu a primeira versão do texto.

"Encarar a morte de frente"

"Com este texto, estamos encarando a morte de frente", gabou-se o presidente francês, Emmanuel Macron, no início de março. Mas será que o presidente da República também encara diretamente este debate? Segundo o site de Franceinfo, Macron teria optado por não mencionar o suicídio assistido e a eutanásia no projeto de lei.

Ainda segundo a mídia francesa, o chefe de Estado gostaria até de convencer as pessoas de que a morte assistida no estilo francês, "que corresponde à escolha livre e incondicional de dispor da própria vida", não seria uma forma de "suicídio assistido", de acordo com a definição muito pessoal que ele dá.

"Não se trata de suicídio assistido", insiste a ministra da Saúde, Catherine Vautrin. O deadline para começar os debates no Congresso francês é o dia 27 de maio, data estabelecida pelo governo francês para começar as discussões na Assembleia Nacional, quando a França estará então a apenas 15 dias das eleições europeias.

Embora Macron tivesse preferido que esse debate começasse após as eleições europeias, o primeiro-ministro Gabriel Attal insistiu que as conversas públicas sobre o assunto deveriam começar antes do pleito do bloco. Attal parece estar apostando em uma exposição potencialmente benéfica na mídia, em um momento em que a maioria governamental está tentando ganhar votos na esquerda francesa, um público normalmente reticente a Macron.

Como definir o sofrimento?

Como podemos definir sofrimento e um prognóstico vital de curto ou médio prazo? Qual é a diferença exata entre um ato fatal realizado por um terceiro, ou pelo próprio paciente? O próximo debate parlamentar na França terá que decidir o que é técnica e eticamente viável dentro dessa questão tão delicada que pode mudar o quadro de vida dos pacientes em fase terminal. 

Em última análise, um sucesso legislativo também seria um forte marcador social para o crédito do jovem chefe de governo, o primeiro-ministro Gabriel Attal, cujo futuro no contexto de uma maioria governamental relativa nunca é realmente certo ou definitivo. Essa escolha de cronograma também está irritando a oposição de direita, que denuncia a "manipulação política" de uma questão altamente sensível.

Um risco de "banalização do suicídio"?

Por que tanta relutância em dar nomes às coisas no governo francês? "Devemos tentar nomear o que é real sem criar ambiguidades", justifica Macron. No entanto, nos bastidores, as equipes do governo são mais explícitas quanto à complexidade e às dificuldades da questão.

"A expressão 'suicídio assistido' é carregada e se refere à questão mais ampla do suicídio. No entanto, não estamos na mesma situação", defende o Palácio do Eliseu. O suicídio assistido será destinado a pacientes para os quais "a morte está presente de qualquer maneira", com um prognóstico vital de curto ou médio prazo e sem esperança de recuperação. "É por isso que o presidente não quer usar essa palavra", explicam fontes do governo.

Essa distinção era importante para a ex-secretária de Estado, Agnès Firmin Le Bodo, que, durante seu período no Ministério da Saúde, expressou sua "preocupação" com "a conjunção entre a palavra 'suicídio' e a palavra 'assistido'". Essa cautela foi reforçada por trocas com o Groupement d'études et de prévention du suicide (Geps) no ano passado, como parte da preparação do projeto de lei na França.

Para as pessoas envolvidas na luta contra o suicídio, é inconcebível "ajudar em um ato suicida", conforme explicado por Françoise Chastang. Para essa psiquiatra do hospital universitário de Caen (norte da França), a expressão "suicídio assistido" corre o risco de "banalizar o suicídio" e colocar em dúvida as ações tomadas para evitar que as pessoas cometam suicídio. "Não podemos permitir que os suicidas imaginem que esse ato pode ser medicalizado e prescrito", insiste ela. "Não deve haver nenhuma ambiguidade", concluiu.

Os debates devem continuar durante um longo tempo

O fim da vida é provavelmente a questão mais íntima e sensível da sociedade contemporânea. Quando anunciou as linhas gerais do projeto de lei nos jornais franceses LibérationLa Croix, no início de março, o presidente Macron pediu ao governo que desse "tempo " aos parlamentares para pensarem sobre o assunto. Desde a tarde desta quarta-feira, um comitê temático especial foi criado na Assembleia Nacional, o Congresso francês.

O deputado centrista Olivier Falorni, um defensor resoluto e de longa data do suicídio assistido, foi procurado para atuar como relator no projeto de lei. Ele está convencido de que, depois de trabalhar por "até 12 meses ", "surgirá uma maioria [para decidir enfim a questão]". Em sua opinião, esse debate "transcende todas as divisões ". Como costuma acontecer na França em questões sociais sensíveis, não se espera que nenhum grupo político dê instruções de voto a seus parlamentares, cada um deverá votar de acordo com sua própria consciência.

Fora do Parlamento, oposição ao projeto será ouvida

De acordo com as pesquisas de opinião, 80% dos franceses são a favor da chamada "assistência ativa na morte", mas alguns setores da sociedade estão mobilizados contra ela. Na liderança desta oposição ferrenha está a Igreja Católica, que se opõe totalmente ao projeto. Nesta quarta-feira, a Conferência Episcopal Francesa anunciou a criação de um porta-voz dedicado ao tema dentro da instituição religiosa.

Uma proporção significativa de cuidadores também está mobilizada. Muitos deles se recusam a considerar a "morte como cuidado ". Esses debates, fora dos muros do Parlamento, podem, portanto, acrescentar um toque de incerteza ao resultado desse processo legislativo, que está apenas começando.

O debate sobre o fim de vida na França era uma das promessas de Emmanuel Macron. Ao mesmo tempo, ele se comprometeu a desenvolver e estender os cuidados paliativos, já que metade dos franceses que precisam deles não têm acesso ao mesmo.

Para isso, um plano para os próximos 10 anos foi anunciado recentemente. O objetivo do cuidado paliativo é garantir a melhor qualidade de vida possível para pacientes que sofrem de doenças graves e incuráveis na França.

(RFI com AFP e agências)

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