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França entra para a história como o primeiro país a inscrever direito ao aborto na Constituição

Quase meio século após a descriminalização do aborto, a França se prepara para inscrever nesta segunda-feira (4) o direito a recorrer à uma interrupção da gravidez na Constituição. A iniciativa visa proteger o acesso à prática, em recuo em vários países, e é saudada por movimentos feministas do mundo inteiro, inclusive no Brasil.

"Abortar é um direito fundamental", diz faixa exibida durante manifestação realizada em Paris em 1° de fevereiro de 2023.
"Abortar é um direito fundamental", diz faixa exibida durante manifestação realizada em Paris em 1° de fevereiro de 2023. AFP - LUDOVIC MARIN
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Daniella Franco, da RFI

Após uma votação histórica no Senado francês, que autorizou a inscrição da "liberdade garantida" às mulheres do país a recorrerem ao aborto, o Palácio de Versalhes acolhe nesta tarde uma votação que deve bater o martelo e tornar o direito irreversível. O Congresso extraordinário reunirá membros das duas câmaras do Parlamento, encerrando um longo processo legislativo que teve início com uma promessa do presidente Emmanuel Macron

Para que o aborto seja inscrito na Constituição francesa, será necessário o aval de 60% dos legisladores presentes, o que deve ocorrer com folga. Entre os 925 deputados e senadores francesas, 760 já adiantaram que votarão a favor da constitucionalização da interrupção voluntária da gravidez ou o IVG, como a prática é chamada da França.

Na França, o aborto foi descriminalizado em 1975, graças ao combate da ministra francesa Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. Em 2022, o prazo máximo para a realização do procedimento aumentou para 14 semanas. 

A mudança não alterou o número de gestações interrompidas, como alegavam conservadores. Há cerca de duas décadas, o número se mantém estável: cerca de 230 mil abortos voluntários são realizados por ano no país.

Temor de um retrocesso

O cancelamento do decreto Roe vs. Wade pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 2022 suscitou o temor de que um retrocesso pudesse ameaçar a Lei Veil na França. Após a mobilização de movimentos feministas em todo o país, o presidente francês se comprometeu a liderar a iniciativa de constitucionalizar o aborto no país. 

No entanto, a iniciativa encontrou diversos obstáculos, como a recusa da inscrição na Constituição do termo "direito ao aborto" que deu lugar à "liberdade garantida" às mulheres que desejarem recorrer à prática. Vários parlamentares, entre eles o próprio presidente do Senado, Gérard Larcher, também se manifestaram contra o projeto por acreditarem que a Lei Veil não estava ameaçada.

Embora em torno de 80% dos franceses apoiem a iniciativa, segundo pesquisas, bispos expressaram "tristeza" com a decisão, assim como grupos conservadores. A organização Marcha pela Vida convocou uma manifestação nesta tarde em Versalhes, "para defender a vida das crianças que ainda não nasceram e todas as vítimas do aborto".

Reforço dos direitos das mulheres

A constitucionalização do aborto na França é uma vitória das mulheres, comemora a edição desta segunda-feira do jornal Libération. "Mulheres de todos os horizontes e de todas as gerações, convencidas que seu combate vai no sentido da história, um caso de bom senso e evolução da sociedade", afirma o editorial do diário.

A iniciativa também ampliará os direitos reprodutivos das mulheres, como recurso à prática nas zonas rurais, onde a realização do procedimento ainda é "bastante difícil", segundo a deputada centrista Éleonore Caroit. Para ela, a iniciativa liderada por Macron permitirá "reforçar o acesso ao IVG nesses lugares". 

A parlamentar, que representa os franceses residentes na América Latina, disse à RFI que ao garantir a liberdade de praticar o aborto como "um direito inalienável", a França envia uma "mensagem forte" ao mundo. "Uma mensagem de que os direitos das mulheres não estão garantidos em nenhum país se não houver uma vontade política de atuar positivamente para garanti-los. Os exemplos dos Estados Unidos, e também aqui na Europa, da Hungria e da Polônia mostram que, o fato de não haver uma vontade política de fazer desses direitos direitos inalienáveis, eles podem ser modificados por governos conservadores que chegarem ao poder", afirma Éléonore Caroit.

A inscrição do aborto na Constituição francesa é saudada por movimentos feministas no mundo inteiro e, espera a deputada francesa, também pode influenciar países onde a interrupção da gravidez é proibida ou autorizada apenas em casos específicos, como o Brasil e muitos outros países da América Latina.

Brasil vive "o oposto" da França

Em entrevista à RFI, Sonia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e membro da coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres, afirma que a proteção do direito ao aborto na Constituição francesa ajuda a avançar o debate sobre a questão no Brasil. 

"A França dar esse passo é bastante fundamental; inspira os movimentos no Brasil e na América Latina", avalia. "Quando esses avanços acontecem em outros países, a sociedade é fortalecida, os movimentos são fortalecidos e inspirados por esta luta, eles veem que é possível vencer", reitera.

A militante lamenta que o Brasil seja palco atualmente do "oposto do que se vive na França". Sonia lembra que, na semana passada, o Ministério da Saúde recuou no cancelamento do prazo determinado pelo governo, anterior, de Jair Bolsonaro, de 21 semanas e seis dias de gravidez para a realização de abortos em casos considerados legais no país: estupro, risco da morte da gestante e anencefalia fetal. 

Oficialmente, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, alega que a decisão "não passou por todas as esferas necessárias". Mas, para Sonia, não há dúvidas que houve pressão de movimentos ultraconservadores e religiosos. 

"As mulheres aqui no Brasil continuam na resistência, lutando contra a extrema direita e parabenizam a luta das francesas por essa conquista. A gente sabe que a extrema direita está atuando no mundo todo tentando retroceder os direitos das mulheres. O fato de a França ter conseguido impor uma derrota aos ultraconservadores é muito importante para todos os movimentos progressistas no mundo", sublinha a militante. 

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