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Resistentes contra Hitler e órfãos do genocídio armênio: quem são os Manouchian, homenageados por Macron no Panteão

Nascidos no coração do Império Otomano, eles foram testemunhas e sobreviventes de um dos mais trágicos acontecimentos do século 20: o genocídio armênio, durante o qual quase dois milhões de pessoas foram massacradas, incluindo seus pais. Com a decisão do presidente francês, Emmanuel Macron, de homenagear os dois heróis da Resistência, Missak e Mélinée Manouchian se tornam os primeiros combatentes - estrangeiros e comunistas -, a entrarem no Panteão, honra máxima na França. 

Missak e Mélinée Manouchian, sobreviventes do genocídio armênio, um dos maiores massacres do século 20, e combatentes da Resistência francesa contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Missak e Mélinée Manouchian, sobreviventes do genocídio armênio, um dos maiores massacres do século 20, e combatentes da Resistência francesa contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. © Archives Manouchian et Roger-Viollet
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Ser sepultado no Panteão da Humanidade, na França, é uma das maiores honras acordadas pelo presidente do país a uma personalidade, por seus valores exemplares, em conjunção explícita com seus ideais "republicanos". Mas o gesto significa mais do que isso: desde que foi criada pela Revolução Francesa no século 18, a "panteonização" é, antes de tudo, uma forma de se opor à canonização católica. Trata-se de uma distinção laica e moral para homenagear aqueles que honraram os "valores da França". As primeiras personalidades a serem sepultadas no local foram Voltaire e Rousseau, símbolos iluministas.

Por mais de cem anos, o Panteão, onde Emmanuel Macron irá admitir o armênio combatente da resistência Missak Manouchian, e sua esposa, a também combatente Mélinée Manouchian, nesta quarta-feira (21), tem sido a necrópole secular dos "Grandes Homens" do país, cuja memória a "pátria agradecida pretende honrar". Manouchian nunca obteve a nacionalidade francesa, que chegou a solicitar em duas ocasiões, e sua entrada no templo dos imortais franceses presta homenagem a toda a "resistência comunista e estrangeira", de acordo com o Palácio do Eliseu.

Edifício imponente com vista para o Mont Sainte-Geneviève, uma das colinas de Paris, durante a Idade Média o local era nada menos que uma abadia abrigando as relíquias de Sainte-Geneviève, a padroeira da capital francesa. A pedido do rei Luís XV, uma nova igreja foi construída no local, entre 1764 e 1790. Mas imediatamente após a Revolução Francesa, a Assembleia Constituinte transformou a igreja em uma necrópole. O Panteão, que deriva da palavra grega para o conjunto de todos os deuses, tornou-se então um templo destinado a "receber os grandes homens da era da liberdade na França". 

Antifascista, comunista, líder da força operária e herói da Segunda Guerra

"Missak Manouchian representa uma parte de nossa grandeza", ele "incorpora os valores universais" de liberdade, igualdade e fraternidade em nome dos quais ele "defendeu a República", declarou a Presidência francesa em um comunicado oficial à imprensa. O Palácio do Eliseu sublinhou ainda que a "panteonização" ocorrerá na quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024, para celebrar o 80º aniversário da morte de Missak Manouchian.

Líder militar de um grupo de combatentes da Resistência estrangeira - os Francs-tireurs et partisans - Main-d'œuvre immigrée (FTP-MOI) - na região de Paris, Missak Manouchian foi preso em novembro de 1943 e fuzilado pelo exército alemão, aos 37 anos, em 21 de fevereiro de 1944, em Mont-Valérien. Celebrado pelo famoso poeta francês Aragon e pelo poeta e compositor Léo Ferré, ele também entrou para a memória coletiva dos franceses por meio do chamado "Pôster Vermelho", espalhado na época da Ocupação nazista por toda Paris pela propaganda de Hitler durante seu julgamento, um cartaz que desde então se tornou um símbolo de coragem e comprometimento na França.

Na vergonhosa propaganda ideológica do regime colaboracionista de Vichy, o "Affiche rouge", ou o "Cartaz Vermelho", com os retratos de dez dos vinte e três combatentes da Resistência que seriam condenados à morte e fuzilados no Mont Valérien, em 21 de fevereiro de 1944.
Na vergonhosa propaganda ideológica do regime colaboracionista de Vichy, o "Affiche rouge", ou o "Cartaz Vermelho", com os retratos de dez dos vinte e três combatentes da Resistência que seriam condenados à morte e fuzilados no Mont Valérien, em 21 de fevereiro de 1944. © AFP

O pôster mostra dez membros da rede Manouchian, incluindo ele próprio, entre outros, em fotografias em preto e branco contra um fundo vermelho-sangue, apresentados como "o exército do crime" e acusados de realizar dezenas de ataques. "L'Affiche rouge" ("O Cartaz Vermelho") também é o título de um filme francês lançado em 1976, que imortalizou a história do grupo da Resistência nas telas.

Origens no Império Otomano e genocídio armênio

Missak Manouchian nasceu em 1906 no que era então conhecido como o Império Otomano. Assim como sua futura esposa Mélinée, que ele conheceu em 1934, após a tentativa de golpe da extrema direita de 6 de fevereiro na França, que levou os dois a se filiarem ao Partido Comunista francês, ele era órfão e sobreviveu ao genocídio armênio, que ocorreu principalmente em 1915 e 1916. Ambos possuíam status de apátridas na França, desde meados da década de 1920.

Ambos também se juntaram ao Comité de secours pour l'Arménie, com 7 mil membros, que organizava ativistas comunistas estrangeiros na França. Eles se casaram em 1937. Missak Manouchian era um trabalhador, mas também um intelectual, poeta, tradutor e editor de um jornal militante.

A declaração de guerra entre a França e a Alemanha nazista em 2 de setembro de 1939 colocou os militantes comunistas em uma situação desconfortável, especialmente os estrangeiros. Hitler e Stalin haviam assinado um pacto de não agressão, conhecido como pacto germano-soviético, que tornou a URSS um inimigo em potencial da França.

De refugiados apátridas a "estrangeiros indesejáveis"

Preso pelas autoridades francesas, Missak optou por se alistar no exército contra as instruções do partido. Como muitos refugiados, Missak e Mélinée se enquadravam na categoria de "estrangeiros indesejáveis", de acordo com um decreto-lei de novembro de 1938, e assim entraram para os campos de internamento que encarceravam ativistas comunistas desde novembro de 1939. Como muitos ativistas estrangeiros antinazistas, sua entrada na clandestinidade precedeu a Ocupação da França e a guerra.

Em junho de 1941, Missak Manouchian foi preso novamente, dessa vez como comunista, porque a Alemanha nazista havia lançado a Operação Barbarossa contra a URSS. Os soviéticos se tornaram inimigos da Alemanha nazista e de seus colaboradores franceses. Libertado, ele se juntou à força de trabalho clandestina dos imigrantes e se tornou o líder político da seção armênia. Até fevereiro de 1943, o casal atuava no que era conhecido como "trabalho alemão".

Isso envolvia incentivar os militares antinazistas que haviam se alistado na Wehrmacht a desertar, até que se juntassem à Resistência. Em abril de 1942, partidários comunistas estrangeiros fundaram a organização de resistência FTP-MOI - Francs-tireurs partisans, main d'œuvre immigrée. Muitos deles eram judeus, condenados a viver escondidos, sob identidades falsas. Desde o final de 1942, a FTP-MOI realizou uma ação antinazista a cada dois dias.

Envolvido na luta armada contra sua vontade, Missak Manouchian liderou seu primeiro ataque em março de 1943. Apesar de sua indisciplina, ele se viu à frente da FTP-MOI durante o verão, substituindo Boris Holban, que havia sido demitido por desafiar as diretrizes do partido. Foi sob seu comando que Julius Ritter, um coronel da SS encarregado do STO (serviço de trabalho obrigatório) na França, foi morto a tiros na rua em setembro.

No dia anterior, Mélinée havia sido parada no metrô com uma bolsa cheia de armas. Quando lhe perguntaram o que estava fazendo, ela respondeu: "Estou carregando pistolas". O policial a deixou ir, repreendendo-a por sua piada de mau gosto. Na noite em que Missak foi presa, ela encontrou refúgio com os pais do homem que se tornaria o célébre cantor Charles Aznavour, após a guerra.

De membros do "exército do crime" a símbolos da Resistência 

Torturado, Missak foi condenado à morte depois de um julgamento considerado ridículo na época. A seus acusadores colaboracionistas, ele disse: "Vocês herdaram a nacionalidade francesa. Nós a conquistamos". Após sua morte, sua imagem e seu nome estavam entre os dez perfis selecionados pelos nazistas para o pôster vermelho espalhado por Paris para denunciar o "exército do crime". Para cada um deles, a ênfase era em sua origem estrangeira. 

Antes de morrer, Missak escreveu uma última carta a Mélinée: "Boa sorte para aqueles que sobreviverão a nós e saborearão a doçura da liberdade e da paz de amanhã. Tenho certeza de que o povo francês e todos os combatentes da liberdade honrarão nossa memória com dignidade. Ao morrer, proclamo que não tenho ódio pelo povo alemão ou por qualquer outra pessoa; todos terão o que merecem em punição e recompensa", escreveu.

O poeta francês Aragon escreveu um poema sobre essa carta em 1955, que foi musicado pelo célébre compositor francês Léo Ferré. Mélinée passou algum tempo na República Soviética da Armênia antes de ser repatriada para a França, horrorizada com a realidade do stalinismo e suas consequências. Durante os julgamentos de Praga em 1952, Artur London, outro ex-membro da FTP-MOI e então ministro da Tchecoslováquia, foi condenado à prisão perpétua, uma experiência que ele relatou no livro L'Aveu, publicado na França em 1968. Mélinée foi nomeada Cavaleira da Legião de Honra em 1986, três anos antes de sua morte em Fleury-Mérogis, nos arredores de Paris.

Quem já foi homenageado no Panteão?

Políticos, escritores, cientistas, membros da Resistência francesa, figuras religiosas e muitos membros das forças armadas: setenta e oito personalidades, sendo apenas cinco mulheres (desde 1907).

Quatro outras pessoas - que em breve serão cinco com Mélinée Manouchian, esposa de Missak, que será sepultada ao seu lado - estão enterradas lá sem um decreto de panteonização: o arquiteto do monumento Jacques Soufflot, Sophie Berthelot ao lado do marido, Antoine Veil ao lado da esposa, Simone Veiln, e o pai de Victor Schoelcher.

O filósofo René Descartes está aguardando sua transferência há mais de dois séculos. Emile Zola (1908), Marie Curie (1995), o pai de "Os Três Mosqueteiros", Alexandre Dumas (2002), bem como Victor Hugo (1885), celébre por "Notre-Dame de Paris" também moram pela eternidade no Panteão.

Simone Veil foi "homenageada" em 2018, e a estrela franco-americana do music-hall e combatente da Resistência francesa, Joséphine Baker, foi a primeira personalidade negra e a primeira artista a ser consagrada no Panteão no final de 2021, embora seu corpo permaneça oficialmente em Mônaco.

O icônico ex-presidente da França, Charles de Gaulle, preferiu ser enterrado em seu vilarejo de Colombey-les-Deux-Eglises (na região de Haute-Marne), enquanto o ex-ministro da Justiça, Robert Badinter, deve ser introduzido em breve no Panteão.

Os justos ou os combatentes da Resistência 

Em 2007, o presidente Jacques Chirac decidiu panteonizar os 2.700 "Justes de France" e todos os heróis anônimos que "encarnaram a honra da França" ao salvarem milhares de judeus da morte durante a Segunda Guerra Mundial.

Na quarta-feira, Manouchian juntou-se a outras figuras da Resistência Francesa, como Jean Moulin, Pierre Brossolette, Geneviève de Gaulle-Anthonioz, Germaine Tillion e Jean Zay. Seus 22 companheiros de armas, além do líder parisiense do FTP, Joseph Epstein, também serão homenageados com uma inscrição.

(Com RFI, AFP e imprensa francesa)

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