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Roubos de edições raras de Pushkin, poeta russo citado por Putin, deixam bibliotecas da França em alerta

As primeiras edições do grande poeta russo desapareceram da Biblioteca Nacional da França e de outras bibliotecas europeias. O caso não é apenas uma questão de patrimônio e finanças, mas também de política, tendo como pano de fundo a guerra na Ucrânia. Pushkin é muitas vezes citado em discursos de Vladimir Putin ou do ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov. Na Ucrânia, por outro lado, as estátuas do poeta estão sendo derrubadas e as ruas que levam seu nome renomeadas. 

Nesta foto divulgada pela Administração da Região de Dnipro, trabalhadores municipais desmontam um monumento do escritor russo Alexander Pushkin no centro da cidade de Dnipro, Ucrânia, sexta-feira, 16 de dezembro de 2022. A Ucrânia está acelerando os esforços para apagar os vestígios de séculos de influência soviética e russa do espaço público, derrubando monumentos e renomeando centenas de ruas para homenagear artistas, poetas, chefes militares e líderes da independência locais, até mesmo heróis da guerra deste ano. (Administração da região de Dnipro via AP)
Nesta foto divulgada pela Administração da Região de Dnipro, trabalhadores municipais desmontam um monumento do escritor russo Alexander Pushkin no centro da cidade de Dnipro, Ucrânia, sexta-feira, 16 de dezembro de 2022. A Ucrânia está acelerando os esforços para apagar os vestígios de séculos de influência soviética e russa do espaço público, derrubando monumentos e renomeando centenas de ruas para homenagear artistas, poetas, chefes militares e líderes da independência locais, até mesmo heróis da guerra deste ano. (Administração da região de Dnipro via AP) © AP
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Guerra e literatura nunca pareceram estar tão unidas, e o estranho caso do roubo de edições raras do poeta russo Pushkin coloca as autoridades francesas com a pulga atrás da orelha. Segundo reportagem de terça-feira (30) do jornal Le Monde, no outono de 2023 agentes de conservação da Biblioteca Nacional da França (BNF) decidiram verificar obras russas de grande valor patrimonial registradas sob essa referência. Elas estão abrigadas na prestigiosa reserva de livros raros, um departamento que preserva os maiores tesouros da instituição, desde manuscritos em latim (impressos antes do século 16) até a primeira versão de Flores do Mal (1857), livro icônico do poeta francês Charles Baudelaire. "Entre esses 200.000 documentos preciosos, a reserva possui onze primeiras edições de Alexander Pushkin (1799-1837), raridades publicadas durante a vida do grande poeta russo", contextualiza o diário.

"O departamento de coleções da BNF está agora em alerta máximo, pois sabe que outra coleção russa em Paris foi vítima de uma tentativa de roubo: na noite de 10 de outubro, alguém invadiu a Biblioteca Universal de Línguas Orientais (Bulac) e quebrou uma janela, mas escapou impune", conta Le Monde. O diretor da biblioteca estabeleceu então a ligação com dois homens que haviam ido ao local no dia anterior para pedir originais de Pushkin, que ela havia se recusado a dar.

Mas o primeiro sinal de alerta veio da biblioteca Diderot, em Lyon (leste), onde dez outras primeiras edições do mesmo manuscrito de Pushkin foram roubadas em julho de 2023, incluindo a primeira edição de Boris Godunov (1825), avaliada em € 70.000. Desde então, as bibliotecas da França estão em alerta.

Um olhar mais atento às edições de Pushkin revela que os originais foram substituídos por réplicas. "Cópias finas, trabalho de falsificadores experientes, que somente um especialista pode detectar", explica o diário francês. Uma contagem posterior mostrou que nove obras foram roubadas: oito de Pushkin e uma rara edição de 1840 de um de seus contemporâneos, Mikhail Lermontov (1814-1841), que também morreu em um duelo de armas. 

A BNF não quis comentar ao Le Monde o episódio, mas confirma que uma queixa foi apresentada oficialmente em novembro de 2023. A queixa afirma que um homem na casa dos 40 anos, credenciado como pesquisador, veio em várias ocasiões entre março e outubro de 2023 para consultar os originais roubados.

Roubo estimado em € 2 milhões

Desde então, a BNF convocou uma reunião de seu comitê de segurança de coleções e planeja uma série de medidas como o uso obrigatório de estojos transparentes e controles visuais mais rígidos que devem ser adotadas no início de fevereiro deste ano.

Um documento interno obtido pelo jornal francês indica que um grupo de trabalho começou a trabalhar "na maneira mais eficaz de combater o roubo de impressos por meio de substituição". No total, os criminosos teriam roubado cento e vinte e quatro livros raros, no valor de pelo menos € 2 milhões, com um apetite especial pelas primeiras edições de Pushkin.

Um símbolo nacional da Rússia odiado pela Ucrânia

"Os originais de Pushkin valem ouro", disse ao Monde um colecionador parisiense que já os vendeu algumas vezes. Em particular, Nicolas Filatoff teve em suas mãos uma edição ilustrada de A Fonte de Bakhchissaraï (1827), um dos primeiros poemas de Pushkin, escrito na Crimeia durante o exílio ao qual foi condenado pelo czar Alexandre I.

"O 'ouro' do colecionador é também o mesmo de um patriota, porque a Rússia em guerra precisa de símbolos, e Pushkin é um deles", explica o jornal francês. Vários especialistas argumentam que os originais de Pushkin estão sendo particularmente visados porque o nacionalismo exacerbado está levando alguns russos a querer repatriar seus manuscritos da Europa.

Outros grandes autores, também considerados heróis nacionais russos, desapareceram das coleções de patrimônio francesas. A maioria das bibliotecas manteve em segredo as referências dos volumes removidos, mas alguns títulos foram divulgados, como os de libretos do teatro russo antigo como The Revizor, de Nicolas Gogol (1836), ou Victory over the Sun, de Alexeï Kroutchenykh (1913), e também vários romances de Lermontov.

No contexto da invasão russa, por outro lado, a Ucrânia agora acelera esforços para apagar os vestígios de séculos de influência soviética e russa do espaço público, derrubando monumentos como bustos de Pushkin e renomeando centenas de ruas para homenagear artistas, poetas, chefes militares e líderes da independência locais, até mesmo heróis da guerra deste ano.

Mas, de todos esses tesouros da literatura russa, Pushkin é o maior, declarou ao Le Monde seu principal tradutor francês, André Markowicz. "Pushkin é tudo, é a língua russa, e a criação da prosa russa. É a base comum sobre a qual toda a Rússia se apoia. E ele é um dos maiores escritores do mundo, junto com Dante, Cervantes e Shakespeare", afirmou ao jornal.

Quanto a uma operação de pilhagem ordenada por Moscou, "é totalmente possível, mas não sei absolutamente nada sobre isso", admite Markowicz, antes de concluir: "Se Pushkin é o poeta nacional, é porque ele pertence a todos. Todos os líderes russos o usaram, não apenas Putin", finalizou.

A investigação de busca das edições raras de Pushkin na França, no entanto, ainda não chegou a nenhuma conclusão definitiva seja com relação aos autores dos roubos, ou de suas motivações.

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