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'Direito à preguiça': conheça o conceito inventado na França que inverte relação entre trabalho e tempo livre

Em um momento em que o primeiro-ministro francês, Gabriel Attal, exalta as virtudes do "trabalho árduo" como uma forma de salvar a França, falando em "destravar" a economia, um outro conceito criado na França em 1880 por Paul Lafargue, defensor da classe trabalhadora e genro de Karl Marx, desafia a tendência e é lembrado por exortar os franceses a parar de pensar na preguiça como um mau hábito.

O "direito à preguiça", conceito inventado na França em 1880. (Imagem ilustrativa).
O "direito à preguiça", conceito inventado na França em 1880. (Imagem ilustrativa). © Getty Images - Cecilie_Arcurs/istock 808138328
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De acordo com o primeiro-ministro da França, Gabriel Attal, durante sua declaração de política geral, na terça-feira (30), "ninguém reivindica o direito à preguiça na França". Poucos, é claro, ousaram defender tal direito publicamente, com exceção da deputada ecologista Sandrine Rousseau, que não hesitou em tuitar após o discurso sobre a preguiça e sua "grande importância para pensar sobre o futuro", segundo informações do site Franceinfo.

Mas a França não seria o berço do "direito à preguiça"? O conceito foi inventado no país pelo genro de Karl Marx, Paul Lafargue, em um livro de mesmo título, publicado em 1880. Nele, o defensor da classe trabalhadora francesa pedia que a questão da relação entre trabalho e tempo livre fosse invertida. Ele solicitava aos leitores que parassem de pensar na preguiça como um mau hábito e, em vez disso, a vissem como um modo de vida politicamente subversivo. A preguiça como "prazer em si mesmo", "uma simplicidade que a vida adulta é excelente em complicar".

Uma vida mais contemplativa, mas não inativa

O conceito vem provocando reações também do outro lado do Atlântico, lembra a mídia francesa. Há alguns meses, em meio à revolta contra a reforma da previdência da França, o jornal The New York Times questionou se "os franceses não seriam "preguiçosos". De acordo com o diário, o gosto francês pela ociosidade tem origem em uma tradição filosófica. Como paradoxo, o jornal ressalta que, no entanto, a produtividade francesa no trabalho está acima da média mundial.

Certamente é preciso muita engenhosidade para encontrar sempre a maneira menos cansativa de realizar uma tarefa. Para a tradição filosófica, os franceses costumam recorrer aos preceitos do filósofo francês Michel de Montaigne, que optou por abandonar seu emprego como magistrado aos 38 anos de idade, em 1570. O teórico do século 16 optou por abandonar sua vida ativa por uma vida mais contemplativa, o que lhe deu tempo para escrever seus famosos ensaios, que influenciaram gerações. A preguiça não seria, para ele, necessariamente sinônimo de inatividade, mas de outros tipos de atividade.

Não trabalhar não significa necessariamente não fazer nada, segundo os defensores do polêmico conceito. Ser preguiçoso é também sonhar acordado, passear, ter tempo para viver para si mesmo e não apenas para os outros. A ideia é não investir no futuro constantemente, mas sim no presente, porque não se sabe o que o amanhã trará. E para fazer isso, você precisa ter, como Montaigne, a coragem, mas também os meios materiais, para fazer essa escolha.

"Embora a preguiça não seja necessariamente um pecado, ela é sempre um luxo", sublinha Franceinfo. Seguindo essa linha de raciocínio, não se poderia realmente dizer, como Gabriel Attal, que 'ninguém na França reivindica o direito de ser preguiçoso'; seria mais correto dizer que poucas pessoas têm a sorte de poder reivindicá-lo", diz o site francês.

Uma preguiça "diferente"

Os dados estatísticos dos relatórios oficiais fornecem uma das respostas mais surpreendentes. Embora a produtividade dos franceses seja um pouco menor do que a dos norte-americanos, ela ainda é muito maior do que a de seus vizinhos europeus. De fato, ela até excede a média dos países do G7. "E os franceses também desmentem a sabedoria convencional - e a da semana de trabalho legal de 35 horas - trabalhando mais horas por semana do que os alemães, famosos por sua dedicação", lembra o Courrier International.

Mas os principais pontos de virada na história cultural da França fornecem uma resposta muito diferente e não menos surpreendente. Sim, os franceses também são preguiçosos. Mas não no sentido que normalmente imaginamos, de preguiça mental.

Além de Michel de Montaigne, no século 16, e Paul Lafargue, no século 19, um outro francês assumiu o papel de crítico do trabalho no século 21: o influente filósofo e economista Frédéric Lordon. Em seu livro de 2010, Capitalisme, désir et servitude (Capitalismo, desejo e servidão), ele explica como os chefes de hoje, em vez de responder à raiva de seus funcionários através da autoridade, respondem com uma "fachada de amizade". "Eles são tão amigáveis que engolimos prontamente sua retórica quando eles nos dizem que o trabalho é uma fonte de alegria imediata", diz o autor e economista francês. 

Em 2016, Lordon foi um dos mentores na França da Nuit debout (Noite em claro, em tradução livre), um movimento de cidadãos franceses cujos membros ocuparam locais públicos em todo o país para protestar contra as reformas trabalhistas introduzidas pelo governo da época. Suas exigências incluíam a criação de uma renda universal, aparentemente uma medida que financiaria a indolência. "Ou melhor, uma certa forma de indolência", contextualiza o Courrier International.

Embora a palavra "preguiça" seja frequentemente usada na França para descrever um certo estado de indolência, a palavra "ociosidade" é igualmente comum. Derivada do latim otium, ela designa uma forma de tranquilidade, até mesmo de elevação espiritual, a anos-luz de distância do negotium, "uma forma de trabalho que nos impede de viver a vida em sua plenitude", explica o site francês.

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