Acessar o conteúdo principal

França: "Quanto mais a oferta política está desestabilizada, mais a extrema direita toma espaço"

Pela primeira vez em uma eleição francesa, dois candidatos da extrema direita disputam o primeiro turno com chances de vencer. Juntos, Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional, e Éric Zemmour, do recém fundado Reconquista!, devem somar pelo menos 30% dos votos, conforme as pesquisas. O historiador Nicolas Lebourg, especialista na extrema direita, analisa o que esse cenário revela sobre o eleitorado francês.

Para o historiador Nicolas Lebourg, especialista em extrema direita, discurso radical de Zemmour deve impulsionar maior mobilização do eleitorado contrário à eleição dos dois candidatos extremistas.
Para o historiador Nicolas Lebourg, especialista em extrema direita, discurso radical de Zemmour deve impulsionar maior mobilização do eleitorado contrário à eleição dos dois candidatos extremistas. © Lúcia Müzell/RFI
Publicidade

“Quanto mais o mercado político está desestabilizado, mais a extrema direita toma espaço”, resume o autor de obras como Les extrêmes droites en Europe (As extremas direitas na Europa, em tradução livre). “Na minha modesta opinião, o nível de radicalismo de Zemmour tende muito mais a deixá-lo bloqueado em torno de 10% dos votos do que passar para 20%, porque ele provoca reações. Um discurso de extrema direita radical mobiliza mais, do outro lado, os eleitores de esquerda e os originários da imigração.”

Leia os principais trechos da entrevista, realizada em Perpignan, a única cidade francesa com mais de 100 mil habitantes governada por um prefeito de extrema direita.

RFI: Em 2022, a força política da extrema direita na França é inédita?

Nicolas Lebourg: Desde os anos 1990, o potencial da extrema direita antes de uma eleição presidencial é de cerca de um terço dos votos, mas ele sempre desmorona até o dia da votação. Nunca chegamos a esse índice em um primeiro turno. A concretização dos votos nunca chegou a tanto. Mas desta vez ela pode acontecer.

RFI: Por que há dois candidatos de extrema direita tão fortes nesta campanha? Eles começaram a trilhar esse caminho mais ou menos juntos, mas aos poucos foram se distanciando um do outro, embora disputem o mesmo eleitorado.

NL: É importante compreendermos a extrema direita francesa. Ela tem a particularidade de, desde sempre, estar dividida em diversos grupelhos. Para acabar com isso, em 1934 foi inventado um sistema chamado compromisso nacionalista, que é a Frente Nacional. Essa estratégia é retomada em 1972 pelo partido Frente Nacional, que é um compromisso nacionalista até 1999, quando há uma cisão interna.

A partir daí, não há mais correntes; há apenas a fidelidade à presidência, primeiro Jean-Marie Le Pen, depois Marine Le Pen. O resultado é a segregação de muita gente, que fica descontente, com raiva, montando novos grupos pequenos e se organizando, de novo, fora do partido. Muitos deles foram humilhados por Marine Len. Todas essas pessoas agora se agregaram, de novo, no Reconquista! Ou seja, reencontramos um compromisso nacionalista na França.

Marine Le Pen e Eric Zemmour trilharam caminhos opostos na campanha presidencial francesa em 2022.
Marine Le Pen e Eric Zemmour trilharam caminhos opostos na campanha presidencial francesa em 2022. © Lionel Bonaventure/AFP/Bertrand Guay

RFI: O que isso nos diz sobre o eleitorado francês, em um momento em que, mais uma vez, os partidos tradicionais estão em baixa nas pesquisas? Os franceses estão mais inclinados a votar na extrema direita? 

NL: Temos um duplo paradoxo. De um lado, temos pesquisas de opinião afinadas que nos mostram a progressão da tolerância há mais de 20 anos, em relação aos muçulmanos, aos imigrantes, à homossexualidade. E neste mesmo período, o voto na extrema direita aumenta. É complexo.

Isso nos remete a antigas questões como o sistema institucional e o mercado político. Vemos com muita clareza que quanto mais o mercado político está desestabilizado, mais a extrema direita toma espaço. Em nível municipal, o Reunião Nacional só tem prefeitos em 0,8% das cidades e vilarejos franceses. É nada; ela não existe. Mas quando ele conquista cidades como Béziers, Perpignan ou Hénin-Beaumont, é porque simplesmente não havia outra oferta política. Os ex-prefeitos eram detestados pela população e o que restou foi o Reunião Nacional. Ou seja, o partido é um efeito da desconstrução do mercado político francês.

Até os anos 1980, o bloco de direita e o bloco de esquerda representavam nove a cada 10 votos no país. Mas hoje, a oferta está totalmente despedaçada.

RFI: O candidato Éric Zemmour se apresenta como antissistema, contra as elites, e realiza uma clara campanha para descredibilizar a sua rival Marine Le Pen. Estamos diante da volta da “diabolização” da extrema direita francesa, depois de todo o esforço de Le Pen de atenuar o discurso de ódio no seu partido?

NL: Existe um paradoxo na popularidade de Éric Zemmour. A estratégia de “desdiabolização” que o Reunião Nacional inventou, em 2012, cortou a abertura para dois públicos: os que continuavam a fazer polêmicas sobre a Segunda Guerra Mundial e os que permaneciam obcecados por ideias étnico-raciais. Marine Le Pen assume o partido impondo a ruptura com esses dois públicos.

Já Zemmour passou os últimos meses falando de Vichy, de etnia, de raça e da teoria da grande substituição [da população cristã europeia por muçulmanos]. Ele pega as duas coisas que incomodavam o Reunião Nacional, cria escândalos e um novo bloco. Este bloco não é de proletários brancos que votam em Le Pen: é mais da classe média e média alta, que votava na direita, mas que teve a barreira antirracista que se rompeu.

Quanto Jean Marie Le Pen falava de desigualdade de raças em 1996, as pesquisas indicam um aumento de 16% da ideia de que deveríamos ter o direito de falar disso. Com a cisão da antiga Frente Nacional, Marine Le Pen não fala mais disso e a adesão à liberdade para se falar disso voltou a despencar. Ou seja, se normalizamos o fato de falar publicamente de certas coisas, elas viram normais.

Nas ruas de Perpignan, governada por prefeito de extrema direita, cartazes fazem campanha para Marine Le Pen: “devolver aos franceses o seu dinheiro”.
Nas ruas de Perpignan, governada por prefeito de extrema direita, cartazes fazem campanha para Marine Le Pen: “devolver aos franceses o seu dinheiro”. © Lúcia Müzell/RFI

Na minha modesta opinião, o nível de radicalismo de Zemmour tende muito mais a deixá-lo bloqueado em torno de 10% dos votos do que passar para 20%, porque ele provoca reações. Nas eleições regionais de 2015, Marine Le Pen e [sua sobrinha] Marion Maréchal tiveram mais de 40% no primeiro turno, mas houve uma frente popular republicana que se criou, pelo próprio eleitorado, de modo que elas não conseguem vencer o segundo turno, que parecia ganho.

A mobilização do eleitorado é a questão central para o Reunião Nacional. Um discurso de extrema direita radical mobiliza mais, do outro lado, os eleitores de esquerda e os originários da imigração. Quanto mais o discurso se normaliza, menos reação ele vai gerar.

RFI: Para além de 2022, Zemmour tem mesmo chance de um dia se tornar o principal nome da extrema direita?

NL: Estruturalmente, quem vai para o segundo turno é a Marine Le Pen, simplesmente porque ela tem um bloco formidável atrás dela, que qualquer político francês inveja: ela está enraizada nas classes populares. Na corrida presidencial, ela parte largamente na frente. Mas não é apenas esse jogo que está sendo jogado.

Ela está na sua terceira candidatura e Zemmour já tem 63 anos. Não seria faltar com respeito nem com um, nem com outro, ao dizer que a carreira política deles não está diante deles. Então a questão é quem terá um aparelho capaz de absorver o outro.

Não se poderá tomar o Reunião Nacional de Marine Le Pen: o estatuto do partido diz que a presidente decide tudo. Mas pode-se tentar esvaziar o RN e é isso que Reconquista! está tentando. Para completar, ao fazer isso, não assume as dívidas de um partido fortemente endividado como o RN.

Existe, portanto, a possibilidade de abrir uma nova lojinha da extrema direita dentro da própria extrema direita, sem as dívidas, sem o histórico nem os problemas da família Le Pen. É isso que está sendo construído, bem mais do que a aventura de Éric Zemmour. Este é o sonho da maioria dos dirigentes da extrema direita desde os anos 1990: se livrar da família Le Pen, que custa uma fortuna. 

Militantes participam de comício de Éric Zemmour em Toulon, sul da França. (06/03/2022)
Militantes participam de comício de Éric Zemmour em Toulon, sul da França. (06/03/2022) AP - Jean-Francois Badias

RFI: Esses eleitores preferem dizer que são nacionalistas, soberanistas, e rejeitam o termo extrema direita, que eles consideram pejorativo. Ao insistir nesta classificação, pesquisadores, intelectuais e a imprensa não acabam por cortar ainda mais o diálogo com essa parte da população, apesar de ela ser representativa em termos de massa eleitoral?

NL: O termo extrema direita sempre deu lugar a debates. A expressão extrema direita existe na língua francesa desde 1820. Ou seja, faz dois séculos. As pessoas do Reunião Nacional dizem que é um termo que remete aos nazistas e ao regime de Vichy, durante a Segunda Guerra – eventos históricos que ocorreram um século depois do aparecimento do termo. Não faz nenhum sentido.

A expressão extrema direita corresponde a uma visão do mundo, segundo a qual é preciso regenerar a sociedade. Se lermos o livro doutrinal de Marine Le Pen, publicado em 2012, a ideia de um unitarismo da sociedade é desenvolvida em mais de 200 páginas. Ela se inscreve exatamente na linha ideológica que recobre a expressão extrema direita há mais de dois séculos. Rejeitar isso seria cometer um erro de francês e de história política. 

RFI: A invasão russa à Ucrânia criou discórdias dentro da extrema direita: ficou difícil apoiar Vladimir Putin, mas para muitos dos seus eleitores, o presidente russo representa um ideal de líder corajoso frente a um Ocidente em declínio. Por que Putin exerce tanto fascínio junto a esses militantes?

NL: A simpatia pela Rússia se explica por muitas razões. A extrema direita aprecia um mundo multipolar. Vladimir Putin representa, em relação aos Estados Unidos, a construção deste mundo multipolar. Ao mesmo tempo, ele representa uma forma de poder que chamamos de iliberalismo que vai além das democracias liberais para garantir os poderes do Estado. Por fim, representa a volta de uma sociedade mais tradicional.

Essas três coisas fazem uma parte da extrema direita sonhar, por menos que conheçam de fato sobre a Rússia. Acho que muitos não imaginam o quanto a Rússia é pluriétnica, por exemplo. Eles imaginam que é um país de brancos ortodoxos. E também não podemos ignorar as relações financeiras de Marine Le Pen com a Rússia. 

RFI: Que impacto a guerra na Ucrânia terá sobre o eleitorado de extrema direita?

NL: Tradicionalmente, na vida política francesa, não podemos dizer que a política externa conte para o eleitorado. No caso de Zemmour, há um risco porque muitas das pessoas que estavam interessadas em votar nele eram de classes médias e superiores, pessoas que tendem a também votar no partido de Emmanuel Macron. O anúncio da candidatura de Macron e a guerra na Ucrânia aconteceram praticamente ao mesmo tempo, e na sequência, Zemmour caiu nas pesquisas.

Uma parte dessa classe média voltou a querer votar no Macron? Ou as posições de Zemmour em relação à Rússia angustiaram? A análise racional, para mim, é uma mistura dos dois. Uma parte da classe média pode pensar que, num cenário incerto no mundo, um presidente que já está no cargo representa mais estabilidade que um aventureiro. 

RFI: Ainda neste contexto geopolítico, de que maneira a pandemia de coronavírus reforçou as convicções dos eleitores de extrema direita, com o discurso contrário à China, à globalização e, para alguns, até antissemita?

NL: O efeito da pandemia na extrema direita foi em vários níveis. Houve mais radicalizações e não necessariamente daqueles que já eram radicais. No Movimento Populista Europeu, houve todo o tipo de posições. Marine Le Pen escolheu a via mais ou menos tranquila, não entrou em delírios complotistas como o seu ex-braço direito Florian Philippot [que criou seu próprio movimento político]. Vimos que todos os que escolheram esse caminho não se deram bem: nem Philippot, nem François Asselineau [que pregava o “Frexit”, a saída da França da União Europeia] não conseguiram formalizar suas candidaturas à presidência na França.

Ao mesmo tempo, para muita gente, o início da pandemia fez pensar que a França tinha se rebaixado de nível, quando ela não tinha máscaras para todos. Representou a ruína da indústria nacional, a incapacidade do Estado de se organizar e planejar, aspectos que incham a demanda por um Estado mais autoritário e voluntarista. Além disso, nas eleições que tivemos, vimos que a abstenção atingiu em cheio o eleitorado RN: o partido não conseguiu convencer o seu próprio eleitorado de que ele seria eficaz e competente em relação à crise.  

RFI: O movimento dos coletes amarelos é bastante forte no sul da França, onde o voto na extrema direita também é marcante. Nesta região, os dois estão mais associados do que no resto do país?

​​​​​​​NL: Os movimentos dos coletes amarelos, mas também os antipassaporte sanitário e antivacinas, igualmente fortes aqui, são muito heterogêneos, com muitos militantes de extrema direita, mas também muitos da França Insubmissa, de esquerda radical. Víamos isso claramente nos protestos: os dois campos marchando lado a lado.

Os coletes amarelos disseram que tinham expulsado os militantes de extrema direita, mas não é verdade: em toda a França, a cada manifestação, muitos dos que acabavam detidos eram conhecidos nomes de extrema direita. E uma coisa que ficou muito clara é que ninguém, nem a extrema direita nem a esquerda, conseguiu se apropriar desses movimentos e transformá-los em dinâmica eleitoral. Esses eleitores são, na maioria, abstencionistas. 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.