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Depressão, revolta, desobediência: como os franceses reagem a um ano de restrições devido à Covid-19

Depois de quase um ano de restrições para tentar barrar a propagação do coronavírus, os franceses não escondem sua exaustão e revolta com as autoridades. Nos últimos dias, uma hashtag vem compilando depoimentos indignados nas redes sociais sobre a possibilidade de um terceiro lockdown no país: #JeNeMeConfineraiPas (não vou me confinar), convocando a população à desobediência civil.

Cansados de restrições e revoltados com a possibilidade de um terceiro lockdown, muitos franceses estão se recusando a seguir as medidas sanitárias.
Cansados de restrições e revoltados com a possibilidade de um terceiro lockdown, muitos franceses estão se recusando a seguir as medidas sanitárias. AP - Thibault Camus
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“Meu último dia de liberdade: domingo, 15 de março de 2020. Tinha sol, eu estava em um parque. E, desde então, a máquina midiática-política-médica adotou o discurso do ‘vejam esses irresponsáveis nos parques!’. Começo do pesadelo. Não os perdoarei jamais”, diz um internauta francês no Twitter, que participa da mobilização contra o lockdown.

Nos últimos dias, a palavra-chave vem sendo acompanhada de outra hashtag, #DesobeissanceCivile (desobediência civil), que convoca os cidadãos franceses a protestarem contra as restrições sanitárias, em um momento em que o governo se prepara para anunciar novas medidas e talvez até um terceiro lockdown.

“Está na hora dos franceses acordarem. Vocês estão se deixando adormecer por esse governo de incompetentes. Desde o primeiro lockdown, nada funciona. Só vemos problemas em todas as áreas”, escreve outro usuário no Twitter.

Depois de um rigoroso confinamento entre março e maio, seguido de medidas mais leves impostas durante o verão no Hemisfério Norte, o governo francês conseguiu controlar as contaminações e mortes. No entanto, com a chegada do outono, no segundo semestre, as infecções voltaram a disparar. A França chegou a registrar quase 60 mil novos casos de Covid-19 por dia no final do ano.

Para os setores da restauração, turismo, lazer e cultura, 2020 foi praticamente nulo. As escolas tiveram que se adaptar às medidas e, a partir do segundo semestre, puderam funcionar em um sistema que adotou também o ensino a distância. Já as universidades foram prejudicadas pelos longos e frequentes fechamentos, sem falar na falta de perspectiva aos estudantes no mercado de trabalho. A situação piorou ainda mais com a circulação de novas variantes do coronavírus.

Neste mês, ao perceber que a quantidade de contaminações voltou a ultrapassar 20 mil por dia, o toque de recolher noturno foi adiantado para as 18h. No entanto, em coletiva de imprensa nesta quinta-feira (28), o ministro francês da Saúde, Olivier Verán, declarou que a medida não está sendo suficiente para barrar a propagação da doença, deixando a entender que o governo deve acirrar as restrições em breve.

"Querem brincar com a nossa liberdade"

Os frequentes pronunciamentos das autoridades nos últimos dias irritam ainda mais parte da opinião pública. Nas redes sociais, muitos cidadãos denunciam as decisões contraditórias do governo. Enquanto restaurantes, bares, academias, museus, teatros e cinemas não podem abrir, os transportes públicos continuam superlotados, aponta o internauta Dubois no Twitter. “A gestão da epidemia é ilógica e paradoxal (…) favorizando a circulação do vírus e querem nos confinar novamente. Não podem brincar com a nossa liberdade desta forma”, ressalta.

Até o momento, a França não seguiu o exemplo de alguns países – como Holanda, Espanha, Dinamarca – onde grupos vêm protestando nas ruas contra as medidas para impedir a propagação da Covid-19. No entanto, muitos franceses já se preparam para não cumprir futuras novas obrigações.

Em caso de um novo lockdown, o governo também deve voltar a impor a obrigatoriedade das justificativas para sair de casa. Na primeira fase do primeiro e segundo confinamentos, no ano passado, os franceses não podiam se afastar um quilômetro de suas residências, sob o risco de pagar multas de € 135 a € 3.700 (em caso de reincidência). Quem violasse a regra quatro vezes em um espaço de 30 dias poderia ser condenado a seis meses de prisão.

No entanto, devido ao cansaço de quase um ano de restrições, alguns cidadãos já não temem mais as sanções e rejeitam futuras medidas. “Tenho 61 anos e ninguém vai me encher mais o saco com isso. De novo vamos ter que preencher um documento para dizer: ‘estou saindo para isso, estou saindo para aquilo, estou saindo pra fazer xixi’. Que palhaçada é essa?”, diz o francês Jean-Pierre, à Franceinfo.

Outros cidadãos afirmam que desrespeitarão novas imposições porque precisam preservar sua saúde mental. “Sinceramente, vou marcar consultas médicas em horários que forem convenientes para mim e vou aproveitar para sair o tempo que eu quiser nesses momentos. Eu preciso desta sensação de liberdade. É indispensável para meu equilíbrio psicológico”, afirma a funcionária pública Natacha.

Consequências para a saúde mental

Para a psiquiatra brasileira radicada na França Eugênia Mascarenhas, não há dúvidas de que as restrições sanitárias têm consequências para a saúde mental das pessoas. Ela lembra que, desde o primeiro lockdown decretado no país, em março, houve um grande aumento de conflitos familiares, o que resultou em uma forte afluência de consultas e internações nos serviços psquiátricos.

No entanto, ela salienta que a população que mais sofre com as medidas são jovens e indivíduos no começo da vida adulta, que viram os laços sociais serem completamente rompidos. “Isso se manifesta através de crises de angústia e ansiedade, episódios depressivos e, nos piores casos, suicídio. É o que tem sido apontado em artigos científicos e o que vemos na prática em diferentes serviços hospitalares”, afirma.

Segundo Eugênia Mascarenhas, as consequências são observadas tanto em grupos que se recusam a aceitar o estado de urgência sanitária e adotam uma postura negacionista diante da pandemia quanto em pessoas que desenvolvem um stress excessivo, se isolando completamente e cortando todos os laços sociais por medo de serem contaminadas.

A psiquiatra também aponta outros fatores relacionados à crise sanitária que vêm afetando a saúde mental dos franceses, como o desemprego e, no caso específico dos jovens, a interrupção dos estudos ou o impedimento da entrada no mercado de trabalho, aumentando a precariedade social. Além disso, o fato de ter de encarar um terceiro lockdown no auge do inverno do Hemifério Norte, em que os dias são menores, mais escuros e faz muito frio, só piora a situação, avalia.

No entanto, a especialista se posiciona contra a convocação das redes sociais para a desobediência civil. Segundo ela, é preciso que a sociedade esteja consciente da gravidade da pandemia e que o engajamento dos indivíduos na luta contra o vírus é primordial.

“As pessoas precisam saber a importância dessas medidas. Elas são necessárias, apesar de perturbarem o nosso cotidiano. É preciso estar consciente de que esse é um novo modo de vida e talvez ele vá se estender além deste ano, mesmo com a vacina. Nós vivemos em coletividade e a vida pode continuar, mas, para preservar a vida do outro, é preciso fazer esse esforço.”

Crianças sofrem com a crise sanitária

Não apenas os adultos ou jovens sofrem com o stress da pandemia. Na segunda-feira (25), várias sociedades de pediatria da França fizeram um apelo para que, em caso de novo lockdown, o governo mantenha as escolas abertas. O motivo: a grande quantidade de pacientes nos serviços de pedopsiquiatria nas últimas semanas.

Um alerta já havia sido feito no início de novembro de 2020 pelo pedopsiquiatra francês Richard Delorme, preocupado com a aumento de suicídios entre menores de 15 anos em 2020. Neste contexto, “a perspectiva de um novo lockdown, com o fechamento de escolas, creches e meios sócio-educativos nos faz temer uma agravação dos efeitos da pandemia”, afirmam especialistas em comunicado. Em maio do ano passado, sociedades de pediatria também haviam alertado sobre o impacto do isolamento das crianças em matéria de aprendizado e saúde mental.

“Ansiedade, ideias pessimistas, gestos suicidários, depressão: tudo isso é reflexo de um mal-estar geral entre as crianças, às vezes com menos de 10 anos”, afirma Christèle Gras-Le Guen, presidente da Sociedade Francesa de Pediatria ao jornal Le Monde.

“Estamos vendo uma epidemia de crianças e adolescentes que não estão bem. Essa é a saúde dos adultos de amanhã”, reitera Elise Launay, presidente do Grupo de Pediatria Geral, Social e Ambiental, que faz um apelo pela abertura de um observatório de epidemiologia em pedopsiquiatria para enfrentar a falta gritante de dados sobre o problema.

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