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Jovens podem ser responsabilizados pelo aumento das contaminações de Covid-19 na França?

Nos anúncios do governo, na imprensa, nas redes sociais: a responsabilização dos jovens franceses na intensificação da epidemia de coronavírus não dá trégua nas últimas semanas. Mas será que eles são de fato os únicos culpados pelo aumento dos casos?

Evento autorizado pelo governo, a Festa da Música levou milhares de jovens às ruas de Paris no último 21 de junho, apesar da pandemia de coronavírus.
Evento autorizado pelo governo, a Festa da Música levou milhares de jovens às ruas de Paris no último 21 de junho, apesar da pandemia de coronavírus. AFP - ABDULMONAM EASSA
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Desde o início do relaxamento das medidas de quarentena na França, a opinião pública tomou um grupo como refém: os jovens. Imagens de festas e bares bares lotados são exibidos incansavelmente pelas mídias, ao mesmo tempo que o governo concentra os apelos a esta mesma parcela da população.

“Peço que a juventude seja vigilante”, afirmou o ministro francês da Saúde, Olivier Verán, em entrevista ao jornal Le Parisien, no último domingo (26). Segundo ele, os testes apontam um aumento das infecções entre pessoas “mais jovens do que no início da epidemia”. Para tentar conter essa tendência, o governo já cogita a possibilidade de ordenar novamente o fechamento de bares.

A cidade de Quiberon, no litoral noroeste da França, é o principal foco do coronavírus atualmente. Em apenas uma semana, 72 casos foram identificados, a maioria deles dentro da faixa etária de 18 a 25 anos.

Para evitar aglomerações, as praias, parques e jardins desta cidade tipicamente turística da região da Bretanha são fechados todos os dias das 23h às 4h. As autoridades também pedem que os mais jovens se abstenham de participar de eventos públicos ou mesmo privados onde o cumprimento do distanciamento social é difícil.

Apesar da autorização para a reabertura de bares no início de junho, boates, salas de shows continuam fechados. Todos os festivais de música que atraíam milhares de pessoas durante o verão no Hemisfério Norte também foram cancelados. Como alternativa, muitos jovens se reúnem em parques, praias ou realizam festas em casa ou em espaços escondidos, longe do controle das autoridades.

Jovens não são os únicos culpados

Para Florence Sordes, professora e pesquisadora em Psicologia da Saúde da Universidade Toulouse Jean Jaurès, não há dúvidas de que o aumento dos contágios pode ser explicado, em parte, pelo comportamento da população mais jovem da França, embora ressalte: “Não são apenas eles os responsáveis pela alta no número de casos”.

No último 24 de julho, um espetáculo reuniu 12 mil pessoas no complexo Puy du Fou, na cidade de Epesses, nordeste da França, apesar da proibição de eventos que acolham mais que cinco mil pessoas. A maioria dos participantes eram adultos mais velhos ou idosos.

No entanto, a especialista constata que a mobilização dos jovens contra a evolução da pandemia é uma tarefa difícil, para a qual há duas possíveis explicações. A primeira delas é a difícil conscientização desta parcela da população, que tem uma ideia muito vaga da gravidade.

“Muito frequentemente, os jovens têm esse sentimento de poder e imortalidade. Todos os que passaram por essa fase sabem que existe essa concepção de domínio da vida e que nada pode nos afetar. Tudo o que eles querem é aproveitar a vida sem se questionar sobre as consequências disso. Eles não se sentem atingidos pelo perigo”, avalia.

De fato, desde o início da crise sanitária na França, o governo insistiu na comunicação da gravidade da doença para a população com idades mais avançadas. Casos de óbitos entre as faixas etárias mais jovens foram raros, dando a entender que o risco era menor para eles.

“A liberdade será a regra”

A segunda explicação para um comportamento mais displicente entre as faixas etárias inferiores foi, segundo Florence Sordes, a ambiguidade do governo no gerenciamento do fim do confinamento. “A liberdade será a regra”, afirmou o então primeiro-ministro Edouard Philippe em 28 de maio, ao apresentar o plano para a segunda fase do relaxamento da quarentena na França.

Desde então, o governo concedeu permissões para a realização de eventos que surpreenderam a opinião pública, como a Festa da Música – comemoração que festeja a chegada do verão em 21 de junho e que ganha ares de Carnaval em muitas cidades. Neste ano, as autoridades fizeram um apelo para que os jovens se contivessem e não se aglomerassem, uma recomendação difícil de cumprir já que a maioria dos eventos ocorrem ao ar livre, sendo impossível o controle do número de participantes. Em Paris, o evento terminou em confrontos com a polícia, acionada para dispersar os foliões.

No dia 14 de Julho, data da festa nacional da França, as autoridades resolveram realizar a tradicional queima de fogos Torre Eiffel, mas sem público. Assim, o acesso à área onde se localiza o monumento foi proibido, levando a população a se aglomerar em vários outros pontos da capital onde o espetáculo poderia ser visto.

Dias antes, em Nice, um evento autorizado pela prefeitura reuniu milhares de pessoas na avenida beira-mar para um show do DJ francês The Avener. Segundo as autoridades municipais, o limite de cinco mil pessoas foi respeitado, embora as imagens mostrassem uma quantidade muito superior de participantes.

“Como é possível que esperem que as pessoas frequentem um show e respeitem medidas de barreira sanitária? Pedem que os jovens sejam responsáveis em um momento de relaxamento das medidas, de férias de verão, de calor. Mas como querem que eles sejam responsáveis se as próprias autoridades estão permitindo situações em que não é possível usar máscara ou respeitar o distanciamento físico? Se eu estivesse no lugar desses jovens hoje, cognitivamente, isso seria bem complicado de compreender”, observa a pesquisadora.

Dinâmica da epidemia

Para a infectologista brasileira Otilia Lupi, que vive na França, essa é “a dinâmica da epidemia de transmissão respiratória”. Ela lembra que o temor de uma segunda onda já existia desde antes da constatação do aumento das contaminações.

“Agora tudo vai depender da conscientização desta faixa etária e da compreensão de que a vida em confinamento não é viável a longo prazo. Não é possível permanecermos em isolamento completo durante seis meses, um ano, como foi feito em um primeiro momento”, avalia.

A médica lembra que a faixa etária onde as contaminações mais aumentam em algumas regiões da França, entre 18-25 anos, é a que normalmente tem mais resistência a qualquer tipo de medida. “Propõem como solução medidas muito difíceis, que interrompem a vida social dessas pessoas de forma drástica. Além disso, essa é uma faixa etária que tem uma percepção de tempo diferente, que age e pensa dentro de um imediatismo. Dizer para eles que terão que ficar mais quatro ou cinco meses fechado terá, com certeza, uma difícil adesão.”

A professora e pesquisadora em Psicologia da Saúde Florence Sordes concorda com a constatação da infectologista. Segundo ela, os jovens precisam do contato social. “Eles se constroem a partir das interações. E os locais onde essas interações acontecem são os bares, boates, ou seja, locais proibidos hoje. Como não há mais lugares de agrupamento, eles vão procurar outras opções.”

As pessoas mais velhas funcionam de outra forma, segundo Florence Sordes. “Eles também precisam de momentos de interação, mas eles geralmente se reúnem em casa e em um número menor. Além disso, há uma consciência maior da gravidade da doença entre eles porque são mais afetados pela Covid-19 que os jovens”, reitera.

Discurso da vacina dificulta conscientização

Otilia Lupi se preocupa particularmente com o discurso sobre a possível descoberta de uma vacina contra a Covid-19 daqui a poucos meses, que pode abrir as portas para comportamentos displicentes diante da doença.

“Essa possibilidade não é real e talvez tenha que ser melhor trabalhada nas campanhas de prevenção. A perspectiva de um tratamento e de uma vacina é muito complexa e muito difícil de ser alcançada a curto prazo. É preciso que as autoridades comuniquem que o se pode fazer agora é obedecer as medidas de barreira e que elas são muito importantes”, ressalta.

Já Florence Sordes critica a comunicação baseada em medo e restrições por parte do governo. “Cada vez que se proíbe algo a um jovem, ele vai encontrar meios para burlar essa imposição e poder reconquistar sua liberdade. Sabemos muito bem que as campanhas de prevenção que buscam assustar as pessoas nunca funcionaram”, observa.

Especialistas também ressaltam que o aumento de contaminações detectadas em jovens ocorre devido ao acesso que essa parcela da população tem atualmente aos testes de Covid-19. No início da crise sanitária, apenas as pessoas consideradas como casos graves e passíveis de hospitalização realizavam o diagnóstico, devido à escassez de exames na época. Por isso a quantidade de infectados dizia respeito a pessoas com idades mais avançadas.

Além disso, poucos jovens desenvolvem indícios da doença, dificultando a iniciativa da realização de testes. Na França, calcula-se que 80% entre eles sejam assintomáticos. Por isso, as Agências Regionais de Saúde prometem começar a veicular uma vasta campanha de informação nos próximos dias focada especificamente nesta parcela da população.

1.392 casos em 24 horas

De acordo com o último relatório divulgado pela agência Saúde Pública da França, na quarta-feira (29), o país registrou o maior aumento de contágios deste mês: 1.392 casos em 24 horas. No entanto, o número de pacientes hospitalizados continua diminuindo, bem como a quantidade de pessoas nas UTIs. Dentro deste mesmo período 15 pessoas morreram de coronavírus no país.

Desde o início da epidemia, a França registrou 30.238 óbitos e 185.196 casos positivos (0,27% da população). O país conta atualmente com 147 focos da doença, 21 identificados nas últimas 24 horas.

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