Acessar o conteúdo principal

Após batalha de quase 1 ano, casal de brasileiras consegue registrar filho em Paris

O que deveria ser um ato simples, registrar um filho, se tornou um pesadelo na vida de duas mães brasileiras na França, que tiveram que travar uma batalha judicial e lidar com burocracias no Brasil e na França – em plena pandemia de coronavírus – para fazer valer o seu direito de ter o nome das duas mães na certidão de nascimento do bebê. “Eles não têm ideia de o quanto isso prejudicou a gente”, desabafam Letícia Novak e Natalia Loureiro Parahyba, mães de Antônio, 11 meses.

Natalia (dir.), que oficialmente não tinha nenhum laço com seu filho nascido na França, foi, enfim, reconhecida como mãe perante a lei brasileira.
Natalia (dir.), que oficialmente não tinha nenhum laço com seu filho nascido na França, foi, enfim, reconhecida como mãe perante a lei brasileira. © Arquivo pessoal/ RFI
Publicidade

Trezentos e trinta e quatro dias. Este foi o tempo que Antônio levou para obter a sua certidão de nascimento brasileira com os nomes de suas duas mães – e os quatro avós maternos –, na última quinta-feira, dia 18 de junho de 2020. 

Natalia e Letícia esperaram ainda mais para conseguir garantir os nomes de ambas no campo de filiação: contataram o consulado do Brasil em Paris desde a confirmação da gravidez de Letícia, para iniciar os trâmites de um registro fora do protocolo, mas dentro da legalidade brasileira.

Letícia, 34, funcionária de RH, e Natalia, 35, arquiteta, estão juntas desde 2013 e se casaram no Brasil em 2016. Moram e trabalham na França desde 2017. No final de 2018, foram a Barcelona, na Espanha, para realizarem o sonho de serem mães por meio de reprodução assistida, um procedimento não permitido na França para casais homoafetivos ou mulheres solteiras. 

Letícia engravidou e, em janeiro de 2019, Natalia entrou em contato pela primeira vez com o consulado em Paris para saber como faria para registrar o bebê em seu nome também, algo previsto na legislação brasileira, porém não nos procedimentos de registro civil da representação diplomática.

Segundo o protocolo descrito no site do consulado, o registro consular é lavrado com base na certidão de nascimento local, não sendo possível nenhum ato de alteração. Ou seja, o nome da criança será aquele que consta da certidão francesa. A vice-cônsul então orientou o casal a registrar o bebê primeiro no consulado brasileiro, para que o caminho fosse inverso: a certidão francesa copiaria os dados da brasileira. Foi a maneira encontrada para fazer prevalecer a lei brasileira no caso delas.

Sem precedentes

Antônio nasceu em 20 de julho de 2019, em La Garrene-Colombes, município da Grande Paris. Foi quando começou “a novela”, como definem Letícia e Natalia.

“Tivemos o azar de a vice-cônsul, que tinha visto como fazer e deixado o processo encaminhado, sair de férias na época em que o Antônio nasceu. A pessoa que ficou encarregada do caso ou estava muito mal informada, ou estava de má vontade. A justificativa era de que o procedimento previsto pela vice-cônsul não era o de praxe. Mas, justamente, nosso caso não é de praxe!”, desabafa Natalia.

Assim, quando chegaram no consulado para fazer o que estava acertado havia meses, souberam que não teriam como registrar o filho no nome das duas: o consulado insistiu que precisava ter a certidão francesa para fazer a transcrição, como manda o protocolo habitual. O excesso de zelo custou caro para as duas.

“Foi um choque”

“Foi um baque, um choque chegar lá e não poder registrar o bebê, como já estava previsto”, relatam Natalia e Letícia.

Diante do impasse, o consulado resolveu consultar o Itamaraty, em Brasília. A resposta foi positiva, porém chegou tarde demais: o prazo para registrar um bebê na França é de apenas cinco dias, e o retorno da autoridade diplomática veio apenas 10 dias depois do nascimento da criança, em 29 de julho de 2019. Resultado: Antônio teve de ser registrado na França como filho apenas de Letícia. Era tudo o que elas queriam evitar.

Tudo seria mais simples se Antônio tivesse sido registrado primeiro no consulado do Brasil, como previsto, e em seguida na França. O casal começou, então, uma longa troca de mensagens com a representação brasileira, na tentativa de resolver o problema. 

Uma destas tentativas foi fazer o trâmite de reconhecimento de maternidade socioafetiva no Brasil, mas o procedimento não pôde ser concluído porque houve uma alteração na lei brasileira  – o reconhecimento de maternidade socioafetiva, que antes era feito em cartório, passou a ser por via judicial, para menores de 12 anos. Sendo assim, o Ministério Público Federal indeferiu o pedido, mesmo se Antônio nasceu antes desta mudança, ocorrida em 14 de agosto de 2019. O bebê já tinha três semanas de vida. 

Lei de Acesso à Informação

Natalia e Letícia acionaram a Justiça, no Brasil, em outubro de 2019, e somente assim perceberam que estavam recebendo informações contraditórias  do consulado. “Eles em nenhum momento foram transparentes com a gente”, lamentam.

“Em outubro de 2019, após o episódio do indeferimento do pedido de maternidade socioafetiva pelo Ministério Público Federal, a DAC-Itamaraty enviou um comunicado ao consulado, autorizando a retificação da certidão consular aqui mesmo em Paris. No entanto, o consulado não fez a retificação e até hoje nunca nos deu as devidas justificativas”, afirma Natalia, que conseguiu acesso à troca de telegramas entre a representação em Paris e a sede do Itamaraty, em Brasília, por meio da Lei de Acesso à Informação. 

Promulgada em 18 de novembro de 2011, a lei federal permite a qualquer pessoa, seja física ou jurídica, solicitar informações públicas das esferas municipais, estaduais e federais. 

Foi assim que elas souberam, ainda, que o consulado informou à Secretaria de Estado que não faria a retificação. Ao mesmo tempo, para Natalia e Letícia, dizia que ainda aguardava informações complementares de Brasília. “Estavam nos colocando em banho-maria”, lamenta Natalia. 

Foram muitas idas e vindas. “Em março (de 2020, com o processo em curso), o primeiro parecer do Ministério Público foi desfavorável. Como o consulado não havia feito a certidão com o nome das duas mães, eles entenderam que era um pedido de registro tardio e que o caso deveria seguir para a Vara de Família”, conta Letícia. 

"Mas, felizmente, algumas semanas depois o juiz interpretou de outra forma e disse que o nosso caso se tratava de simples filiação, a ser tratado na Vara de Registro Civil, desde que apresentássemos todos os documentos exigidos no provimento 63 do CNJ, que era o provimento vigente na época em que o Antônio nasceu”, complementa.

“Começamos a correria para apostilar, traduzir e registrar os documentos em cartório no Brasil para que fossem validados juridicamente. Isso tudo em plena pandemia, com muitos telefonema e choros, contando com os funcionários públicos. Até que conseguimos enviar a documentação para a Corte de Versalhes para apostilar antes de mandar para o Brasil. Com a pandemia, tudo atrasou, o que nos fez passar por ainda mais momentos de angústia. O estresse foi muito grande”, relembram.

Só assim, com a ordem da Justiça brasileira, o consulado retificou a certidão. Em 18 de junho de 2020, começou uma nova vida para Antônio e suas mães. Natalia, que oficialmente não tinha nenhum laço com seu filho, foi, enfim, reconhecida como mãe perante a lei brasileira.

Procurado pela reportagem, o consulado do Brasil em Paris disse que atuou em consonância com as normas vigentes e a Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963. “Conforme preconizado pelo decreto 7.724/2012, que regulamenta a Lei de Acesso à Informação, informações detalhadas sobre o caso não podem ser divulgadas pelo Consulado-Geral”, indicou a representação diplomática, por e-mail.

Mudança e alívio

A reportagem da RFI falou com Natalia e Letícia no dia em que elas foram ao local pegar o novo documento: “Foi um alívio! Para mim, este caso representa mudança, a esperança de que as coisas podem mudar quando a gente corre atrás”, define.

“Foi a primeira vez que aconteceu um caso assim no consulado. Eles ficaram completamente sem saber o que fazer com esta questão e a gente foi muito prejudicada por conta disso. Acho que foi um aprendizado para eles também”, afirma Natalia. 

"Eu acredito que o que aconteceu com a gente vai acabar abrindo portas para casais que vivam a mesma situação. Eu acho que a gente plantou uma semente. Foi importante expor esta história porque pode ajudar outras pessoas. Se a gente não dá a cara a tapa, as coisas não mudam”, diz Natalia.

Elas compreendem que a situação era nova para o consulado brasileiro, mas sabem que existiam meios que permitiam que o registro fosse feito como desejavam. O casal critica a morosidade com que o caso foi tratado: para elas, trata-se de discriminação.

Considerando que, no Brasil, é a partir do registro que a criança nasce para a vida civil, pode-se dizer que Antônio teve de esperar 334 dias para debutar. Natalia e Letícia começam agora uma nova saga: a retificação da certidão francesa do filho a partir das mudanças no seu documento brasileiro. Mas de uma coisa Antônio pode ter certeza: tem duas mães que vão lutar por ele até conseguir justiça e igualdade de direitos.

 

 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.