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"Cláusula de consciência” dos médicos impede cada vez mais acesso ao aborto nos países europeus

Os movimentos conservadores, com o apoio das igrejas, estão conseguindo restringir o acesso de fato ao aborto, até nos países onde a prática é autorizada pela lei. Burocracia, falta de médicos nas pequenas cidades e um aumento da evocação da cláusula de consciência pelos ginecologistas têm impedido o acesso das mulheres a este direito, apesar da legislação favorável.

Manifestantes protestam contra lei que limitou o direito ao aborto na Polônia.
Manifestantes protestam contra lei que limitou o direito ao aborto na Polônia. AFP - WOJTEK RADWANSKI
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Em uma entrevista à RFI, a socióloga e professora da Universidade Livre de Bruxelas Bérengère Marques-Pereira, autora de L’Avortement dans l’Union Européenne: Acteurs, enjeux et discours (O Aborto na União Europeia: atores, desafios e discursos, em tradução livre), analisa os retrocessos em curso no continente europeu, mas também na América Latina – onde a pauta permanece paralisada, salvo raras exceções, como na Argentina.

A evocação crescente da cláusula de consciência dos médicos para se recusarem a realizar interrupções voluntárias de gravidez está abafando este direito das mulheres na Europa?

Acho que sim. De maneira insidiosa, é o caso. Precisamos ter em mente que qualquer médico que realiza qualquer ato médico sempre tem o direito de consentir ou não em realizar esta prática. A cláusula de consciência é generalizada. Quando falamos especificamente sobre o aborto, podemos quase conceber que se trata de uma dupla cláusula de consciência. Também temos que ressaltar que dois países da União Europeia, a Suécia e a Finlândia, não têm na sua legislação sobre o aborto a questão da cláusula de consciência. Houve requisições da Federação das Associações Familiares Católicas Europeias contra a Suécia sobre esta questão, junto ao Comitê Europeu dos Direitos Sociais, e os pedidos foram rejeitados. Mas para responder exatamente à sua questão, temos evocações em massa da cláusula de consciência em alguns países, como a Itália, onde 80% dos médicos recorrem a essa objeção de consciência, o que faz com que 70% do território italiano não tenha acesso à prática do aborto.

Na França, algumas regiões também são verdadeiros desertos médicos em relação à interrupção voluntária da gravidez. Também temos mais evocações da cláusula nos hospitais públicos da Espanha e de Portugal, e até mesmo entre jovens ginecologistas no Reino Unido. Na Áustria, o acesso ao aborto só ocorre, claramente, nas grandes cidades. É importante frisar que o uso da cláusula de consciência está se institucionalizando. Hospitais, clínicas ou todo o setor de ginecologia de um estabelecimento, por exemplo, a estão reclamando, enquanto instituições.

Você falou da objeção por jovens ginecologistas. Há uma questão geracional envolvida, nessa recusa em praticar aborto?

Isso é importante se consideramos que, na França, na Bélgica ou na Holanda, por exemplo, a ruptura do tabu, antes da regulamentação, aconteceu pela prática ilegal, mas não clandestina, do aborto por jovens médicos da época. Eles não hesitaram em praticar a desobediência civil, num movimento coletivo, pacífico, de pessoas decididas a não tolerar mais aquela situação. Eles corriam o risco de pegar penas de prisão, mas isso não os impedia de praticar o aborto. Eles tinham consciência dos seus atos e assumiam as consequências jurídicas deles.

Estávamos num período de subversão, enquanto que agora não podemos dizer que estejamos num [risos]. Nos centros de planejamento familiar ou nas clínicas onde se praticavam abortos na época, nos anos 1960 e 1970, havia uma cultura grupal de médicos laicos, de esquerda, que contestavam a ordem dos médicos. Agora, estamos mais num âmbito de subvenção, de conseguir subvenções para infraestruturas médicas para o pré e pós-aborto, assim como ao acesso à contracepção. Estamos em uma lógica totalmente diferente. Perceba que também estamos com falta de formação sistemática dos jovens médicos à prática do aborto. As aulas sobre isso não são mais dadas de maneira obrigatória, nas faculdades. Na Bélgica, os médicos que o praticam em geral são os que estão próximos da aposentadoria.

O que explica essa tomada de posição dos médicos?

Talvez, do ponto de vista da carreira, individualmente, talvez não seja o ato médico mais valorizado. Mas precisamos perceber que estamos num período de alto crescimento dos movimentos chamados “anti-escolha” ou "pró-vida", que têm outras causas além de bloquear o acesso ao aborto, mas neste aspecto, o ideal para eles é bloquear qualquer tipo de aborto. Todos, inclusive o terapêutico. A alta desses movimento é considerável, embora não date de hoje. Começou nos anos 2000, 2010. Antes disso, tivemos nos anos 1990 as grandes conferências internacionais da ONU sobre os direitos humanos e desenvolvimento, em Viena, no Cairo e em Pequim, quando os direitos das mulheres foram assumidos como direitos humanos, tanto quanto os dos homens.

Naquele momento, houve uma mudança de paradigma. Ainda não chegamos a reconhecer a liberdade reprodutiva e o direito ao aborto, mas a ideia da saúde reprodutiva e sexual é reconhecida politicamente, como algo que diz respeito aos casais ou aos indivíduos, mas não são resultado de uma política demográfica. Portanto, há um questionamento da instrumentalização do corpo das mulheres em nome das políticas natalistas ou antinatalistas.

Na época, o papa, que tem um lugar de observador na ONU, emitiu reservas sobre todos os capítulos que falam sobre os direitos e a saúde reprodutivos e sexuais, devido às posições doutrinais e seculares neste sentido, que valorizam a proteção do feto antes mesmo do nascimento. Aliás, nenhum tratado internacional reconhece os direitos do feto. É preciso ter nascido para ser titular de direitos, ser um sujeito na lei. E este é um grande desafio para os movimentos anti-escolha.

Na União Europeia, temos a federação One of Us, que reúne organizações importantes que se proclamam pró-vida e têm uma ação forte não apenas de fazer lobby junto aos governos para que preparem projetos de lei regressivos. Uma dessas associações na Polônia, integrante da One of Us, preparou o projeto de lei que foi defendido pelo governo do PiS (Partido Lei e Justiça) para proibir completamente o aborto, e isso passou. Agora, teve uma determinação da Corte Constitucional, em outubro, e entrou em vigor, apesar de toda a mobilização extremamente forte que houve não apenas na Polônia, como em toda a Europa, contra o projeto.

Outro exemplo, mas que não deu certo, é a Espanha. Uma associação preparou um projeto de lei para o primeiro governo Rajoy, para regredir a lei que permitia o direito ao aborto. A mobilização contra foi tão forte na Espanha e na Europa que o governo recuou, inclusive porque o Partido Popular [conservador] se dividiu sobre a questão.

A Igreja Católica, mas também os evangélicos, no caso americanos e latino-americanos, exercem o seu poder para impedir avanços das mulheres, em especial em relação ao aborto. Uma influência antiga sobre a política que permanece intacta, portanto? 

Aqui na Europa, a cada vez, tivemos um apoio explícito dos episcopados nacionais e de um organismo que se chama Comece, a Comissão das Conferências dos Episcopados na União Europeia, representante do Vaticano. Eles conseguem fazer alianças com as igrejas ortodoxas, evangélicas – cujo poder é cada vez maior, principalmente na América Latina –, mas também com os populistas de direita. Eles se apresentam como colonizadores da voz ético-política e a monopolizam, como se não houvesse uma voz ético-política do lado dos movimentos pró-escolha, que existem também enquanto federação na União Europeia. Há uma dissimetria, não apenas porque as associações que se autoproclamam pró-vida não reconhecem os pró-escolha como interlocutores na discussão política. Eles os consideram inimigos. Já os pró-escolha consideram aqueles que não partilham os mesmos valores como adversários políticos. São coisas completamente diferentes.

O dogma do “direito à vida” do feto faz com que, na prática, a vida das mulheres quase seja considerada como uma vida de segunda categoria?

Podemos colocar assim, sim. Esses movimentos que se proclamam pró-vida vão de par, com frequência, com movimentos ou governos populistas muito conservadores ou claramente reacionários, como na Polônia, na Hungria ou no Brasil, além de Trump. Eles questionam não apenas os direitos das mulheres, diretamente – como o primeiro-ministro turco Erdogan que obriga a Turquia a se retirar da Convenção sobre as Violências contra as Mulheres, a Convenção de Istambul –, como vão de par com movimentos masculinistas, com uma rejeição profunda do suposto poder dos movimentos feministas.

A ascensão e a popularização do feminismo nos últimos anos ajudam a explicar esse movimento de rejeição ao aborto?

Eu não diria que o feminismo está mais poderoso, mas temos uma institucionalização dos direitos das mulheres, seja por tratados ou por ministérios, agências do Estado. Podemos dizer que o gênero se tornou uma ferramenta de ação política, para políticas públicas, para que a igualdade entre homens e mulheres seja respeitada, a priori ou a posteriori. Deste ponto de vista, há um reconhecimento político de um feminismo igualitário e quanto a isso não há dúvidas, em vários continentes e países.

Mas enquanto isso, temos um aumento das desigualdades sociais e econômicas entre homens e mulheres, um aumento das violências de gênero, em particular agora, durante a pandemia; temos, de maneira geral, artifícios que podem ser perniciosos contra o direito ao aborto, ou seja, estamos em uma tendência regressiva. Por isso, eu não falaria em crescimento do feminismo: acho que as feministas estão na defensiva, para não perder os direitos adquiridos, antes de mais nada.

Em seu livro, você detalha os sucessivos retrocessos no direito ao aborto na Europa nos últimos anos. Ele permanece autorizado em quase todos os países do bloco, mas o acesso à interrupção da gravidez é dificultado em diversos países. Você acha que a Europa pode estar se dirigindo a recuos ainda maiores, como a volta da proibição do aborto? Ou isso é inimaginável?

Não acho que seja inimaginável, como mostra o exemplo da Polônia. Eu diria que estamos em uma tendência de atrapalhar, aqui e ali, diversos elementos que permitem o direito ao aborto. Por exemplo, em vários países da Europa Central e Oriental, acumularam-se procedimentos burocráticos para viabilizar o acesso ao aborto. As mulheres são obrigadas a participar de consultas com psicólogos, médicos, assistentes sociais – e não é só uma vez. Podem ser duas, três, quatro encontros, como ocorre na Hungria. Acaba demorando tanto que, no fim, as mulheres acabam ultrapassando o prazo legal para poder realizar a interrupção da gravidez e o que lhes resta é recorrer ao turismo abortivo, em outro país, ou ao aborto clandestino. Nestes casos, há uma violação do direito à saúde, simplesmente, que pode levar até à morte das mulheres.

Na Europa, temos uma tendência de permissividade do aborto, apesar das regressões em curso, e mesmo assim temos uma das taxas de aborto mais baixas do mundo, de 29 mulheres por 1.000 por ano. Na América Latina, onde a tendência geral é proibitiva, temos uma das taxas mais altas, de 49 mulheres por 1.000 por ano – abortos que, em geral, acontecem de maneira clandestina.

Este assunto sempre foi extremamente polêmico e mobilizou a sociedade, a favor ou contra. Ainda estamos longe de aceitar plenamente que uma mulher, e apenas ela, tem o direito de decidir sobre o seu próprio corpo?

Não chegamos lá. O único lugar onde podemos falar de uma concretização do reconhecimento dos direitos reprodutivos é nos países nórdicos, em especial na Suécia. No resto, temos sistemas mais ou menos permissivos ou repressivos. Na América Latina, em particular, estamos longe disso, com apenas dois casos de aborto autorizado, a Argentina e o Uruguai. Mas, mesmo assim, na lei argentina há um artigo que permite a cláusula de consciência institucional, o que deixa a porta aberta para que a aplicação da lei seja impossível. Foi por isso que ela passou.

No Uruguai, temos um fenômeno similar da multiplicação dos médicos que evocam a objeção de consciência, a tal ponto que em certas regiões, o acesso ao aborto é simplesmente impossível. A lei é inaplicável, nesses lugares. O reconhecimento pleno do direito à saúde das mulheres sequer é reconhecido, quanto menos à liberdade reprodutiva.

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