Acessar o conteúdo principal

Festival de Toulouse exibe panorama da juventude latino-americana, entre emancipação e revolta

Uma juventude latino-americana desperta, livre sexualmente e politicamente ativa protagoniza boa parte dos filmes nesta 34ª edição do Cinélatino, o Festival de Cinema de Toulouse. Mais empoderados que a geração de seus pais e menos acomodados com a estrutura clássica das desigualdades sociais, eles aparecem inquietos em produções de diretores como o chileno Rodrigo Litorriaga, a chilena de origem mapuche Claudia Huaiquimilla, a argentina Inés Maria Barrionuevo, ou o brasileiro Gabriel Martins.

Cena de "La Francisca, uma juventude chilena", longa-metragem de Rodrigo Litorriaga que abriu o Cinélatino 2022 em Toulouse, ao lado de "Salvador Allende" do documentarista chileno Patricio Guzman.
Cena de "La Francisca, uma juventude chilena", longa-metragem de Rodrigo Litorriaga que abriu o Cinélatino 2022 em Toulouse, ao lado de "Salvador Allende" do documentarista chileno Patricio Guzman. © DR
Publicidade

Márcia Bechara, enviada especial à Toulouse

A liberdade e a fluidez sexual dão a tônica dessa nova geração latino-americana mostrada na telona do Festival de Cinema de Toulouse. Seja em “La Francisca, una juventud chilena”, filme de abertura do evento assinado por Rodrigo Litorriaga, “Camila saldrá esta noche”, da argentina Inés Maria Barrionuevo ou “Marte Um”, de Gabriel Martins, as adolescentes protagonistas roubam a cena não apenas com muita sensualidade e naturalidade, mas também numa apropriação política de seus próprios corpos, como no slogan do filme argentino, que repete a máxima das trabalhadoras sexuais do país: “meu corpo, minhas regras”, frase que é constantemente ouvida também nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros.

O encontro e a sensualidade dos corpos periféricos não são negligenciados nos filmes latino-americanos. A cena de sexo entre as duas jovens negras numa cobertura “de coxinhas [sic]” de um bairro nobre de Belo Horizonte em “Marte Um”, de Gabriel Martins, traz a apropriação mesma dos espaços eróticos e de poder, normalmente reservados a brancos de classe média alta, seja nas telas do cinema brasileiro, seja nos melhores apartamentos das imobiliárias nacionais (e como não se lembrar dos recentes casos de racismo com moradores negros de condomínios em São Paulo?). Eunice, a jovem negra do núcleo familiar protagonista, funciona como um elemento de catalisação, de passagem de uma mentalidade arraigada aos novos tempos insuflados pelo feminismo.

Feminismo 

Em “Camila saldrá esta noche”, a jovem protagonista, vinda do interior [La Plata], desafia as normas de um colégio católico de Buenos Aires ao amarrar na mochila o lenço verde da luta pela legalização do aborto. Segundo a diretora Inés Maria Barrionuevo, a produção foi filmada antes da vitória ganha nas ruas pelas jovens feministas argentinas, que gritam – nas ruas e no filme - “meu corpo, minhas regras”, ecoando o slogan das trabalhadoras do sexo argentinas.

As lutas, como vivencia a personagem Camila, são transversais. Não por acaso, ela assume integralmente a relação com a colega de outra classe social num colégio heteronormativo sem dramas ou culpas, em cenas altamente sensuais, com quadros fechados que deslizam sem vulgarizar a descoberta das adolescentes, ou menosprezá-la.

Em “La Francisca, uma juventude chilena”, do diretor Rodrigo Latorriaga, tudo é marginal, periférico, pobre e susceptível de tremer. É que ele nos leva para Tocopilla, entre o Pacífico e o deserto do Atacama, uma região chilena acostumada a terremotos de todos os tipos, geológicos e sociais.

Afastados do cosmopolitismo da capital Santiago, abandonados à própria sorte, Francisca e seu irmão autista desenvolvem uma espécie de elo silencioso, alimentado por desenhos, silêncios e gaivotas. A presença dos anos de chumbo da ditadura de Pinochet está integralmente presente na figura do professor que se revela abusador, numa verdadeira virada no roteiro do filme.

"Sempre achei que a sociedade chilena continuaria amarrada à Constituição de Pinochet. E é por isso que eu quis construir, através da personagem do professor, a onipresença desta condenação histórica que vem da ditadura", disse Litorriaga à RFI. A jovem protagonista de "La Francisca", uma juventude afastada pré-Boric, que deseja e consegue fugir, seria, para o diretor, "uma metáfora do Chile" antes da eleição que levou o ex-líder estudantil ao Palácio de la Moneda.

"Cheguei ao Chile com 16 anos, no norte do país, justamente após a transição. De certa forma, o filme sobrevoa a minha vida pessoal. Minha juventude não conseguiu realizar o que o Chile hoje alcançou, no momento histórico em que isso deveria ter acontecido, em 1992, 1993", diz Litorriaga. 

“De todo jeito, penso que, mesmo com Boric, estamos ainda acabando de sair do episódio Pinochet. Há cerca de 30 anos, a sociedade chilena imaginou que estava livre da ditadura, mas, na verdade, todas as instituições foram herdadas da época de Pinochet, criando vícios organizacionais do ponto de vista do mundo político, que se acostumou com esse contexto e a não enfrentar as questões profundas que a sociedade chilena precisava discutir”, afirmar o diretor.

Francisca foge para Santiago, não sem antes experimentar na liberdade total da fuga o sexo com estranhos numa das paisagens desérticas de Iquique, ao norte de Tocopilla. É um prazer notar como a temática sexual é representada na tela grande sem grandes traumas pelas novas gerações do cinema latino-americano. No caso de "La Francisca", a opressão sexual fica em seu devido lugar: nas gerações anteriores.

A temática política – os mais de 6.000 desaparecidos da ditadura militar chilena – também chega de maneira direta ao espectador por meio da narração em off da rádio local, que informa e contextualiza a miséria e a opressão através de uma narração em perspectiva histórica.

Finalizando o panorama jovem do Cinélatino 2022, a diretora chilena Claudia Huaiquimilla, 35, traz em seu belo filme “Mis Hermanos Sueñan Despiertos” o tema do cotidiano de jovens em uma prisão para menores, um filme que é inspirado em eventos ocorridos em prisões e centros de detenção no Chile, onde uma escolha e um pacto deverão ser feitos, apesar da violência carcerária. A câmera da diretora se aproxima o máximo possível desses jovens maltratados pela vida, cujas experiências amadureceram prematuramente, numa película delicada de transição à vida adulta.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.