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"Tenho vergonha de termos sido o último país a abolir a escravidão", diz cineasta brasileiro em Paris

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Pernambucano do Recife, Luís Henrique Leal dirige, ao lado de Caio Zatti, o curta “Galinhas no Porto”, que integra a seleção da 16ª edição do “Brésil en Mouvements”, festival de cinema documentário brasileiro, que acontece em Paris, organizado pela associação Autres Brésils.

O cineasta Luís Henrque Leal, que apresenta seu curta "Galinhas no Porto" na 16ª edição do festival "Brésil en Mouvements", em Paris.
O cineasta Luís Henrque Leal, que apresenta seu curta "Galinhas no Porto" na 16ª edição do festival "Brésil en Mouvements", em Paris. © RFI
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Leal é professor de Fotografia e Tecnologia em Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e vive desde o ano passado na Espanha, onde realiza um doutorado em Comunicação em Audiovisual na Universidade Autônoma de Barcelona.

RFI – “Galinhas no Porto” trata a questão da memória, e de uma memória que nos é muito sensível no Brasil, que é a escravidão, a condição do negro. Ou seria mais correto afirmar que o curta denuncia o desafio de se resgatar essa memória?

Luís Henrique – Existe um desafio para todo mundo que vive em um país como o Brasil, para todo mundo que tem alguma responsabilidade com a história, que é de desnaturalizar certas coisas que parecem que estão constituídas como normais. Existe uma dimensão da violência do passado, fantasmas do passado que continuam nos assombrando, feridas abertas desse passado, que estão muito presente ainda. O filme parte de um gesto de rememorar, a partir do que, em alguma medida, são ruínas desse passado, mas também permanece de uma forma muito forte. É um duplo gesto de desnaturalizar e rememorar, pensar como a gente lida criticamente com esse passado, para que a gente possa transformar isso. A condição da escravidão, do colonialismo no Brasil, mudou de forma, mas a condição em que as populações negras vivem no Brasil ainda é muito perversa.

RFI - O curta já passou pelo PriFilmFest, em Pristina, em Kosovo, antes de ser exibido em Paris. E chega ao festival em um momento em que o movimento antirracista passa por uma fase histórica. Como você vê essa contribuição do filme para o movimento?

As sessões de exibição do filme sempre são um espaço de debate, de diálogo, de aprendizado muito grande. O filme é baseado em uma pesquisa histórica, de documentos do passado em relação ao tráfico negreiro, em relação à violência policial, encarceramento da população negra. As sessões nos permitem discutir e perceber o impacto que o filme causa nas pessoas como uma contribuição, como se a cada sessão a gente conseguisse chegar a um lugar novo, que não é do filme propriamente, mas de um movimento que a gente cria em torno desses espaços. Diálogos que são tão importantes para que a gente consiga ganhar corpo e consciência, que são coisas fundamentais.

RFI - A condição do negro é um assunto recorrente na sua produção. O curta “Fotograma”, de 2016, por exemplo, também em parceria com Caio Zatti, aborda o tema. Por que essa escolha?

Esse é um tema fundamental para todo mundo que vive em um país como o Brasil. Eu, por exemplo, sou professor na Universidade Federal do Recôncavo, que é uma universidade muito negra: 80% dos nossos alunos são negros ou pardos. Eu entro nesse universo um pouco motivado por esse interesse. É muito interessante ver uma juventude que está ganhando consciência da questão racial, passando a ter uma compreensão política sobre isso. Mas ao mesmo tempo, é um assunto que diz respeito a todos os brasileiros. Eu tenho vergonha que a gente tenha sido, por exemplo, o último país a abolir a escravidão. É uma vergonha para o país que a polícia militar use um brasão da guarda real de 1809, que tinha como função principal capturar negros fugitivos O papel da polícia era de capitão do mato.

E essas coisas permanecem no presente, quando ainda se tem um extermínio da população negra no país hoje. Só a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, mata mais do que toda a polícia dos Estados Unidos. A gente precisa ter um compromisso ético em transmitir certas ideias e ajudar a criar a discussão, para que a gente promova a transformação estrutural nesse país. E lamentavelmente, nos últimos tempos, a gente está retrocedendo.

RFI – O filme trata as revoltas de negros escravos em outros países e como estas influenciaram o Brasil. Como você vê o movimento negro hoje no país?

Eu vejo com grande alegria [o fato] que este debate tenha ganhado muita força. Quando eu cursei minha graduação, era um momento em que ainda não havia cota racial no Brasil. Logo depois você tem a implementação da lei do sistema de cotas que vai criar uma massa de estudantes negros que vai entrar na universidade. E uma distorção da discussão abordava a questão da meritocracia do estudante negro e tal. Eu sempre defendi que era muito bom para a universidade, porque o Brasil precisa disso, a sociedade precisa disso, ter representatividade.

Você não pode ter uma população quase 50% negra e, no ensino superior, ter um gargalo absurdo. É preciso ampliar a multiplicidade de pessoas, de perspectivas, de pontos de vista, de histórias de vida. É maravilhoso que esse tema venha ganhando força. As consciências se ampliam à medida que essas coisas ganham as ruas e a gente cria espaços de discussão para isso.

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