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Saúde em dia

França: associações enfrentam lobby do vinho e lançam campanha que propõe um mês sem álcool

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Começo de ano é tempo de novas resoluções e uma delas, para muitas pessoas, é comer melhor, praticar mais atividades físicas e beber menos. Na França, pelo menos 5 milhões de pessoas têm problemas de saúde ou mentais ligados ao consumo exagerado de álcool, que é, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), a segunda causa de morte que pode ser evitada, depois do cigarro.

Alcool: um produto que deve ser consumido com (muita) moderação
Alcool: um produto que deve ser consumido com (muita) moderação Pixabay
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A França é o segundo produtor mundial de vinho e produziu, em 2018, 4,6 bilhões de litros da bebida. A liderança no setor impulsiona a economia, mas dificulta o trabalho das associações locais que lutam contra o alcoolismo. Um exemplo recente é a polêmica envolvendo o chamado “Dry January”, uma iniciativa que surgiu em 2013, no Reino Unido. A proposta é incitar a população a “limpar” o corpo dos excessos das festas de fim de ano e se abster de beber durante um mês.

O Ministério da Saúde francês planejava apoiar a campanha, mas o presidente francês, Emmanuel Macron, teria prometido aos viticultores que o governo não participaria do evento. O episódio, que circulou na imprensa francesa, nunca chegou a ser confirmado ou desmentido pelo palácio do Eliseu. A ANEV, organismo que representa os viticultores, chegou a publicar uma carta no Twitter, pedindo ao Executivo que se abstivesse, sem trocadilhos, à campanha de abstinência em janeiro, incitando ao “consumo responsável”. Os produtores alegam dificuldades no setor – apesar das exportações terem progredido 8% no primeiro semestre de 2019.

As associações decidiram lançar a campanha “Dry January” da mesma forma, sem o apoio oficial do governo francês. A campanha está atualmente ativa nas redes sociais. “Respeitamos, é lógico, essa dimensão cultural. Hoje pensamos que é possível equilibrar essas questões, e também as questões sociais e de saúde. A campanha mobiliza, lúdica, não moralizadora. O objetivo não é proibir, mas propor. Não é parar de beber de vez, mas fazer uma pausa”, explica Nathalie Latour, representante da Federação Dependência, que reúne mais de 200 associações de prevenção ao alcoolismo.

Nathalie lembra que os dependentes químicos não são o público-alvo da campanha: depois de serem diagnosticados e tratados, não podem mais tomar nenhuma gota de álcool. Ela esclarece que a ideia é incitar as pessoas a beber menos e a se questionarem sobre o que as levam “a tomar uma”: prazer, pressão social ou até mesmo stress. Questões, diz que parecem interessar os mais jovens. De acordo com ela, mais de 52,5% dos franceses que usaram o aplicativo em inglês da campanha no ano passado tinham menos de 34 anos.

A comunicação da campanha é eficaz nesta faixa etária, ressalta a francesa. “Não temos um discurso que faz as pessoas se sentirem culpadas, ou moralizadores. Propomos um desafio, um challenge, um questionamento, e os jovens que associam o consumo a situações festivas ou ao fim de semana, e não ao consumo cotidiano”, explica.

Apesar da dimensão cultural, que é inegável na França, ela pensa que é importante lembrar que o vinho ou outras bebidas alcoólicas não são “um produto como qualquer outro”, e trazem riscos. Por isso, reitera, iniciativas como o “Dry January” ajudam a instaurar um diálogo equilibrado: ele não visa “demolir” um mercado ou questionar o patrimônio cultural, mas conscientizar sobre os efeitos do álcool para a saúde. As pausas sem álcool, lembra, melhoram a qualidade do sono, ajudam a perder peso e ajudam no autocontrole – o consumo passa, diz a representante da associação, do excesso à degustação pelo prazer.

Toxicidade

O vinho na França integra de maneira tão forte a cultura francesa, que as antigas gerações costumavam, na hora das refeições, misturar a bebida com agua para matar a sede. Nathalie conta que, durante muito tempo, o vinho foi considerado como um alimento. Esses hábitos, entretanto, estão evoluindo, diz. Os hábitos ao longo do tempo foram mudando, e hoje na França bebe-se menos no dia a dia e quantidades maiores no fim de semana.

O consumo precoce e abusivo pelos jovens é objeto de preocupação dos cientistas. “O álcool é uma droga muito tóxica”, lembra o psiquiatra e neurocientista francês Jean-Luc Martinot, do Inserm (Instituto de Pesquisas Médicas da França), que realizou um amplo estudo sobre o consumo de adolescentes.

Segundo ele, as primeiras experiências levam até a mesmo a uma modificação do genoma humano toda a informação de uma pessoa codificada em seu DNA e que coordena o funcionamento do organismo. “Um fator ambiental quando encontra certos elementos do genoma, vai mudar sua expressão. O álcool é um elemento importante. Se você tomar um ou alguns copos ainda criança ou adolescente, alguns elementos genéticos vão se expressar, o que não teria ocorrido sem o consumo”, explica.

O psiquiatra Xavier Laqueille, chefe do setor de tratamento de drogas e outras dependências químicas do hospital Sainte Anne, um dos mais renomados da capital, considera que cerveja é a principal porta de entrada para o alcoolismo – o investimento em anúncios e mídia é maior do que em outras bebidas, mas reconhece que a cultura do vinho pode “justificar” um consumo às vezes excessivo. “Somos um país de tradição vitícola. De uma maneira geral, a mensagem é 'beba com moderação o vinho e os destilados são mais perigosos para a saúde'. Trata-se de um posicionamento cultural. Nossa posição, como médicos, é complicada”, relata.

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