Acessar o conteúdo principal

Argentinos se despedem de Menem, presidente por trás da estabilidade, mas também da queda do país

Os argentinos velam o líder que abraçou o neoliberalismo, foi cofundador do Mercosul, protagonizou uma década, mas terminou refugiado na imunidade parlamentar para não ser preso. O velório que começou no domingo à noite continua até a tarde desta segunda-feira (15).

Argentina se despede do ex-presidente Carlos Menem
Argentina se despede do ex-presidente Carlos Menem AFP - CHARLY DIAZ AZCUE
Publicidade

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Em novembro de 1989, o então chanceler Domingo Cavallo comunicou ao presidente Carlos Menem que o muro de Berlim tinha caído. "O muro caiu", disse o ministro. "Para que lado?", perguntou Menem. "Para o lado dos Estados Unidos", respondeu o chanceler. "Então, vamos para esse lado", indicou o chefe de Estado.

A anedota política resume o pragmatismo que guiava as decisões de Menem acima de qualquer ideologia. Eleito sob a promessa de uma "revolução produtiva" a partir do Estado, uma vez no poder, encolheu o Estado e adotou as medidas neoliberais que o mercado queria. "Economia popular de mercado" tentaria depois justificar o seu giro que transformaria o país.

"Acaba de morrer o último estadista que a Argentina teve. Foi um estadista porque relacionou o país com o mundo e porque transformou a Argentina. Havia um país antes de Menem e houve um país depois de Menem. Algumas transformações foram muito boas; outras nem tanto, mas o país mudou com ele", avalia à RFI o analista político e consultor em opinião pública, Raúl Aragón.

1 a 1

Para as medidas liberais, Menem contaria com o próprio Domingo Cavallo já não como chanceler, mas como ministro da Economia, autor da denominada "conversibilidade", regime através do qual um peso argentino valeria um dólar americano. E, para cada peso emitido, deveria haver um dólar nas reservas do Banco Central. O regime monetário ficou popularmente conhecido como "1 a 1".

Essa semi-dolarização da Argentina, adotada em 1 de abril de 1991, era o remédio para combater o risco de uma nova hiperinflação. A estabilidade conquistada duraria quase onze anos, o período de maior estabilidade econômica na Argentina. Uma conquista que permitiu um segundo mandato a Menem em 1995, a partir de uma reforma na Constituição para habilitar a reeleição. Nesse período, o país importou bens de capital, renovando a capacidade produtiva do país.

Eleito em 1989, Carlos Menem foi o líder que mais tempo governou a Argentina de forma ininterrupta (foto no momento de sua eleição, ao lado de sua mulher Zulema Yoma)
Eleito em 1989, Carlos Menem foi o líder que mais tempo governou a Argentina de forma ininterrupta (foto no momento de sua eleição, ao lado de sua mulher Zulema Yoma) AFP/Archivos

"Foi um presidente transformador, que tentou um projeto de modernização da Argentina, pelo lado de investimentos em infraestrutura e por uma abertura econômica. Na política exterior, projetou a Argentina ao mundo, fazendo do país um ator internacional", recorda o analista político Sergio Berensztein.

Porém, para manter o regime de paridade com o dólar, era necessário superávit fiscal. Num primeiro momento, isso se conseguiu com dinheiro arrecadado com as privatizações. Todos os serviços (água, energia elétrica, telefonia, gás, pedágios) eram estatais, inclusive os canais de TV e as estações de rádio. Num segundo momento, o país endividou-se de forma insustentável até o colapso econômico de 2001.

"A conversibilidade foi o remédio para acabar com a inflação, mas deveria ter acabado no final de 1994 com o efeito Tequila, que desvalorizou o peso mexicano e afugentou o capital aos mercados emergentes. Era a hora de flexibilizar o regime para não perder competitividade. Mas o governo tinha ficado dependente da receita e os argentinos, apaixonados pelo remédio", avalia à RFI o ex-ministro da Economia, Roberto Lavagna (2002-2005).

Quando a recessão começou, no terceiro trimestre de 1998, Menem ainda teria mais um ano de governo. Em dezembro de 1999, deixou o poder com os efeitos dramáticos sociais provocados pelo câmbio fixo numa economia sem competitividade.

Luzes e sombras

"Menem estabilizou a economia e acabou com a inflação. A classe média teve acesso ao crédito. Mas, por outro lado, a abertura indiscriminada da economia levou as empresas à falência e os trabalhadores ao desemprego. O regime levou a um descomunal aumento da dívida", compara Raúl Aragón.

As privatizações que ajudaram na modernização e nas contas públicas também foram foco de corrupção. A mesma conversibilidade que permitia estabilidade para os investimentos também encarecia a produção local. Era mais barato importar do que produzir. A consequência foi a pulverização do parque industrial, o desemprego e a pobreza. A mesma classe média que, com a estabilidade, teve acesso ao crédito já não podia pagar as suas dívidas em dólares. Nesse jogo de luzes e sombras, o mesmo regime que permitia vantagens também gerava desvantagens. E esses dois lados da moeda são os que hoje dividem as opiniões dos argentinos.

Salário chegava até o final do mês

O corpo de Carlos Menem é velado no Congresso argentino desde as 21 horas de domingo até a tarde desta segunda-feira (15). "Eu venho me despedir de quem me permitiu durante anos que o meu salário fosse suficiente para chegar ao fim do mês. Para mim, o '1 a 1' foi fabuloso", agradece Rubén Ramírez (69) enquanto aguarda na fila ao redor do Congresso.

"Foi o melhor presidente das últimas décadas. Foram dez anos de estabilidade que nenhum outro conseguiu desde a Segunda Guerra mundial. As pessoas puderam consumir. As empresas puderam investir. O país cresceu", concorda Martín Meléndez (60).

Caudilho popular

Carlos Menem foi o líder que mais tempo governou a Argentina de forma ininterrupta. Tinha uma intuição para o poder que soube exercer. Governou de forma democrática sem perseguir a oposição, sem atacar a imprensa e sem submeter os demais poderes. "Era um caudilho popular e muito carismático, mas não foi populista. Concentrou muito poder mas não quis perpetuar-se no poder", diferencia Aragón.

Outra marca da chamada "década menemista" foi a procura pelo fim das divisões e a favor da unidade nacional. Com Menem, a polarização tornou-se reconciliação.

No campo político, incorporou parte da oposição e de suas propostas ao governo. Para terminar com as ameaças de desestabilização dos militares, indultou os ex-repressores da última ditadura, mas também os líderes guerrilheiros.

"Assim, fechou fissuras e feridas com os militares. Procurou sempre construir acordos. Respeitou as liberdades. A liberdade de imprensa, por exemplo, foi total. Não usou a pauta publicitária para disciplinar os jornalistas", ressalta Raúl Aragón. "Ele consolidou a democracia. A partir de Menem, os militares não tentaram mais pôr em risco a estabilidade democrática", acrescenta Sergio Berensztein.

Abertura ao mundo

No terreno internacional, traçou um alinhamento automático com os Estados Unidos e inaugurou, nas palavras do seu próprio chanceler Guido Di Tella, as chamadas "relações carnais". "A associação com os Estados Unidos era política, com a Europa (sobretudo França, Itália e Espanha) por investimentos nas empresas privatizadas e, com o Brasil, através do Mercosul, uma aliança comercial e estratégica", explica Aragón.

Menem consolidou o vínculo com o Brasil e foi cofundador do Mercosul como Zona de Livre Comércio (1991) e como União Alfandegária (1995). O alinhamento com os Estados Unidos implicou que a Argentina fosse o único país latino-americano a participar na Guerra do Golfo em 1991. Também levou à interrupção da transferência de tecnologia nuclear da Argentina ao Irã.

Essas decisões teriam provocado represálias por parte do Irã. A Argentina sofreu dois atentados, ainda impunes. Em 1992, uma bomba acabou com a Embaixada de Israel em Buenos Aires. Em 1994, outro atentado arrasou a Associação Mutual Israelense-Argentina (AMIA). Muitos acreditam que o violento acidente de helicóptero que tirou a vida do seu filho, Carlos Menem Jr., em março de 1995, tenha sido também um atentado.

As condenações e o refúgio parlamentar

O capítulo internacional ainda seria o responsável pela condenação de Carlos Menem. Em 2001, ficou em prisão preventiva domiciliar, acusado de venda ilegal de armas à Croácia e ao Equador. Foi absolvido em 2011, mas depois condenado a sete anos de prisão. Em 2018, a Corte Suprema o absolveu por considerar que já tinha passado o tempo razoável para uma sentença definitiva.

Em 2015, foi condenado a quatro anos e meio por pago de subornos. No ano passado, foi condenado a três anos e nove meses por fraude na venda de um terreno.

Para não ser preso, Carlos Menem tornou-se senador em 2005, renovando sempre o seu mandato pela sua província natal, La Rioja. Precisou refugiar-se na imunidade parlamentar do cargo e, acuado pelas acusações, fechou um acordo tácito de proteção política em troca de votar sempre de acordo com os interesses do kirchnerismo, corrente política que marcaria uma nova história na Argentina.

Antes das condenações, em 2003, Menem tentou voltar à Presidência. Ganhou no primeiro turno com 24,4% dos votos enquanto o seu rival mais próximo, o então desconhecido Néstor Kirchner, ficou com 22%. Mas, consciente de uma inexorável derrota, Menem abandonou a disputa e renunciou ao segundo turno.

O ex-presidente foi diagnosticado com uma pneumonia severa em 13 de junho passado. Em 15 de novembro, foi internado com uma infecção urinária. Na véspera de Natal, foi induzido ao coma do qual saiu em 8 de janeiro. A infecção urinária derivou em problemas cardíacos agravados por uma diabete de base.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.