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Linha Direta

Retrospectiva 2019: protestos alteram modelos econômicos e mapa político da América do Sul

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Para surpresa geral, um tsunami de manifestações, com características insurrecionais, invadiu as ruas de vários países da América do Sul em 2019. Os protestos evidenciaram frustrações sociais e colocaram em xeque sistemas políticos e modelos econômicos, tanto de esquerda quanto de direita.

"Acorda Chile; a ditadura continua e se chama neoliberalismo": manifestações continuam no Chile neste final de 2019.
"Acorda Chile; a ditadura continua e se chama neoliberalismo": manifestações continuam no Chile neste final de 2019. REUTERS/Ivan Alvarado
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Correspondente da RFI em Buenos Aires

Outubro foi o mês de deflagração de uma convulsão social que começou pelo Equador, mas que ainda está em aberto no Chile, na Bolívia e até na Colômbia.

Apesar da profunda crise econômica e social na Argentina, a expectativa gerada por uma transição política evitou que a onda expansiva chegasse ao país, pelo menos por enquanto.

Até mesmo o governo brasileiro temeu uma réplica. O presidente Jair Bolsonaro deixou às Forças Armadas de sobreaviso para o caso de um efeito contágio. E o ritmo das reformas no Brasil diminuiu por precaução.

Fenômeno global com características locais

O que acontece na região se insere num contexto mundial, mas tem características locais.

"A América do Sul experimenta um momento de intensos conflitos sociais, como parte de um fenômeno mundial de ordem tecnológica e de organização política", avalia o analista em política internacional, Jorge Castro, diretor do Instituto de Planejamento Estratégico.

"O mundo convive com a convergência de dois processos: o de uma sociedade global, na qual a comunicação é instantânea, e o de uma nova revolução industrial com base na tecnologia. O resultado desses dois processos é que em vários países do mundo, de forma simultânea, questiona-se o status quo", explica.

Os protestos também despontaram em Hong Kong, Líbano, Iraque, Egito, Etiópia, Argélia, Espanha (Catalunha), França (Coletes Amarelos) e Grécia. Esse fenômeno mundial faz um movimento nacional influenciar outros, mas com estopins diferentes em cada país.

O fenômeno tecnológico explica a maciça presença de jovens e a ausência de líderes partidários tradicionais, dificultando que os governos encontrem interlocutores com os quais negociar uma saída ou mesmo que os manifestantes canalizem suas demandas.

"Os protestos levantam um leque de exigências imediatas que encurralam a capacidade de resposta dos governos. Vejo uma reação social ao esgotamento de dois modelos, o neoliberal (de direita) e o populista (de esquerda)", observa o analista em política internacional Federico Merke, da argentina Universidade San Andrés.

Classe média sai às ruas

As rebeliões são basicamente de classe média, tanto da tradicional quanto daquela que surgiu ao longo de uma década de bonança dos preços das matérias primas até 2014. O cobre chileno; o petróleo equatoriano, colombiano e venezuelano; o gás boliviano ou a soja argentina; o minério de ferro e a soja brasileiros. O chamado "boom das commodities" permitiu uma melhoria generalizada sem que, no entanto, a desigualdade entre uma classe e outra tenha diminuído substancialmente. Depois da bonança, os governos aplicam receitas de ajuste, como no caso do Equador ou da Colômbia, enquanto a nova classe média resiste a voltar ao patamar anterior.

Esse coquetel de frustração explodiu, incentivado por outro elemento comum entre todos os países da região: uma forte polarização política.

Os protestos começaram por motivos contornáveis, mas a falta de respostas adequadas levou a uma renúncia, como no caso da Bolívia, e a um plebiscito para uma eventual nova Constituição, como no caso do Chile. Em todos os países, são comuns as exigências de melhor sistema de Saúde e de Educação e contra a corrupção.

Outubro "caliente"

No Equador, o presidente Lenín Moreno revogou um decreto que eliminava subsídios ao combustível depois de encurralado pelos sindicatos e pelos movimentos indígenas que paralisaram o país entre os dias 2 e 13 de outubro.

No Chile, onde os protestos continuam, um pequeno aumento no valor do metrô, em 6 de outubro, provocou uma rebelião popular que forçou o presidente Sebastián Piñera a convocar um plebiscito para uma nova Constituição. Apesar de uma vasta bateria de medidas, os protestos continuam.

Na Colômbia, a partir do dia 21 de novembro, começou um ciclo de protestos e de greves contra as reformas trabalhista e previdenciária e a favor do cumprimento do processo de paz.

Na Bolívia, Evo Morales renunciou no dia 10 de novembro, depois de três semanas de maciços protestos populares contra uma fraude eleitoral confirmada pela Organização dos Estados Americanos. A reclamação na Bolívia foi basicamente contra um presidente que resistia a deixar o poder por mais que a Constituição impedisse um novo mandato.

Processos em 2020

O ano de 2019 começou com uma forte expectativa de mudança na Venezuela a partir da proclamação, em janeiro, de Juan Guaidó como presidente interino. No entanto, a mudança aconteceu em outros países, sendo o Chile, até então o "melhor aluno" da região, o menos previsível de todos.

Em 2020, os casos da Bolívia e do Chile vão continuar nas urnas. Também se espera um novo embate entre Juan Guaidó e Nicolás Maduro na Venezuela.

O presidente chileno Sebastián Piñera cedeu a um histórico plebiscito no dia 26 de abril. A votação pode habilitar uma Assembleia Constituinte a pôr fim à Constituição de 1980 do ditador Augusto Pinochet (1973-1990), considerada a base da desigualdade chilena.

"O Chile cresceu muito, com muitas oportunidades e educação de qualidade, mas com altos níveis de desigualdade. A classe média emergente tem demandas e a elite chilena, que estava comprometida com o combate à pobreza, não está disposta a compartilhar privilégios. Os chilenos estão descontentes, não porque o caminho do país esteja errado ou porque a situação tenha piorado, mas porque o país não avança na igualdade de oportunidades", explica o cientista político chileno, Patricio Navia, da Universidade de Diego Portales e da New York University.

Na Bolívia, depois da fraude eleitoral de 20 de outubro, novas eleições devem acontecer em junho, mas ainda não há uma data. Serão as primeiras, em 14 anos, sem Evo Morales como candidato.

"Com a crise na Bolívia, a região voltou ao que denominava 'golpes da rua', quando um governo eleito perdia o controle das ruas devido aos protestos que transbordavam em violência e saques. Um presidente enfraquecido via-se obrigado a renunciar", recorda o analista político e historiador, Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos por uma Nova Maioria.

Novo mapa político

Em 2020, o Chile pode ficar menos à direita com a promessa de uma Assembleia Constituinte. A Bolívia começou a girar à direita com a renúncia de Evo Morales, movimento que precisará ser ratificado nas próximas eleições.

Em 2019, o resultado eleitoral no Uruguai levou o país da esquerda para a centro-direita. Vitória da centro-esquerda só mesmo na Argentina que se tornou uma ilha cercada de direita por todos os lados. O ano termina com uma América do Sul toda à direita ou à centro-direita, com exceção da Venezuela e da Argentina.

As manifestações chilenas foram as que mais influenciaram até agora. Tiveram incidência na deflagração de manifestações na Colômbia e levaram o governo brasileiro a suspender o programa de abertura econômica e de redução do tamanho do Estado, baseado no modelo chileno.

Militares de volta ao cenário

No processo de desorientação dos governos sobre como conter o avanço popular, os militares ressurgiram no cenário durante 2019.

O venezuelano Nicolás Maduro sustentou-se nas Forças Armadas para controlar os protestos e se manter no poder. O chileno Sebastián Piñera impôs toque de recolher e a volta dos militares à repressão, algo que não se via no Chile desde a ditadura de Pinochet. Reação semelhante teve o equatoriano Lenín Moreno ao usar o Exército para conter a rebelião indígena. O ex-comandante das Forças Armadas da Bolívia, Williams Kaliman, sugeriu a renúncia de Evo Morales. E, no Brasil, Bolsonaro se apoiou na ala militar do seu governo para avaliar um eventual cenário de contágio dos protestos da vizinhança.

"Quando surge uma situação de instabilidade, agora aparecem os militares para definirem como se resolvem as disputas democráticas. Isso é preocupante para a democracia na América Latina", adverte o sociólogo e analista político Ariel Goldstein.

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