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O Mundo Agora

"Democracia não é só voto"

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É o vício homenageando a virtude. Hoje, não há ditador ou governo autoritário que se preze que não jure fidelidade a todos os preceitos da democracia. Difícil encontrar um autocrata que não invoque os valores democráticos para justificar roubos, repressões, matanças, mentiras e propagandas cínicas.  

Fotomontagem (da esq. para direita)  dos Presidentes:Rodrigo Duterte, Filipinas, Vladimir Putin, Rússia, Nicolas Maduro, Venezuela
Fotomontagem (da esq. para direita) dos Presidentes:Rodrigo Duterte, Filipinas, Vladimir Putin, Rússia, Nicolas Maduro, Venezuela Reuters/ RFI
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A palavra “democracia” serve para encobertar qualquer desmando em nome de uma suposta legitimidade popular outorgada pelo voto. Como se ninguém tivesse mais coragem de defender regimes ditatoriais, nua e cruamente. Salvo o dito “Estado Islâmico” terrorista, é claro. Obviamente, não viraram todos democratas de carteirinha.

As ameaças contra os valores e liberdades garantidas pela democracia liberal são hoje mais sutis. Antigamente, havia um consenso mínimo sobre o que era ou não uma sociedade democrática. É verdade que os partidos comunistas vinculados à União Soviética ou à China de Mao-Tse-Tung tinham o desplante de defender uma dita “democracia popular” que seria bem mais democrática do que a suposta “democracia burguesa” do mundo ocidental.

Mas pouca gente acreditava nessa lorota, sobretudo os próprios cidadãos que viviam no “socialismo real”. Ditadura era ditadura (de esquerda ou de direita), e democracia era democracia por mais imperfeita que fosse. Agora que as ideologias minguaram, a tática dos autocratas é desvirtuar permanentemente a prática e os valores democráticos, destruindo qualquer consenso.

Putin, mestre da ditadura "mascarada"

O objetivo é vender a ideia de que tudo é relativo, é só uma questão de pontos de vista. O mestre em transformar alhos em bugalhos é o russo Vladimir Putin. Cada vez que é acusado de malfeitorias e crimes, ele acusa os acusadores ou mente descaradamente. A aviação russa comete crimes de guerra bombardeando hospitais e organizações humanitárias em Alepo, o Kremlin responde imediatamente com a mesma acusação contra coalizão pró-ocidental que está tentando retomar Mossul.

Como se usar um tapete de bombas para destruir sistematicamente tudo que possa ajudar a população civil fosse a mesma coisa que matar inocentes por um erro de tiro. Putin montou uma rede de televisões e sites internet espalhados pelo mundo inteiro para vender aos incautos que os soldados russos fantasiados de guerrilheiros que invadiram a Ucrânia não tinham nada que ver com Moscou, ou que o míssil que derrubou um avião de passageiros no céu ucraniano não era russo.

Também tenta convencer que as eleições na Rússia são livres e democráticas. Fácil: basta impedir que a oposição possa ter qualquer meio significativo de expressão ou de organização, enquanto os hackers ligados ao Kremlin buscam interferir nas eleições americanas. Na África, vários autocratas manipulam as Constituições e os processos eleitorais, para dar um verniz de democracia às suas ambições de se perpetuar no poder. Alguns já querem até abandonar o Tribunal Penal Internacional sob o pretexto falacioso de que a justiça internacional é preconceituosa contra os africanos e portanto não existem critérios para julgar líderes políticos.

Presidente filipino lança campanha de assassinatos extrajudiciais

O presidente Duterte nas Filipinas, escudado no voto popular, lançou uma campanha de assassinatos extrajudiciais em massa que de democráticos não têm nada. Mais sofisticado e cínico é o regime venezuelano que conseguiu tomar conta do Executivo e do Judiciário e, em nome da democracia, está cerceando abertamente a expressão democrática dos cidadãos para não ter que entregar a rapadura, nem que isto provoque uma guerra civil.

A verdade é que democracia não é só voto (e ainda menos só voto no Executivo). Sem instituições independentes dos governos, sem liberdade de expressão e associação, sem justiça imparcial, sem burocracias eficientes e neutras, sem leis eleitorais que realmente apoderem os eleitores, só pode haver paródias de democracia. Não é verdade, que “todo es igual, nada es mejor”, como cantava Gardel no tango “Cambalache”. O grande desafio dos próximos anos vai ser restabelecer uma verdade democrática. Se tudo é relativo, só o vale-tudo vale. Seria o começo do fim de qualquer sociedade civilizada.

Alfredo Valladão, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, faz uma crônica de politica internacional às segundas-feiras para a RFI Brasil

 

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