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Planeta Verde

Animais criados para morrer geram debate ético sobre caça na França

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Quem caminha pelas florestas da França nessa época do ano pode ouvir os tiros. A caça faz parte da história do país há muitos milhares de anos. Pinturas rupestres encontradas em cavernas representam cenas de caça da pré-história. Mas ao defender valores como a não violência e o respeito aos seres vivos, uma parte da sociedade moderna tenta estabelecer uma nova relação com o mundo animal.

Caçadores com cães de caça na floresta de Chatenoy, centro da França.
Caçadores com cães de caça na floresta de Chatenoy, centro da França. Lionel BONAVENTURE / AFP
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Atividade de lazer dos reis e da burguesia, a caça era feita com diferentes tipos de armamento e mesmo a ajuda de falcões. Na pintura, na literatura e na cultura francesa não faltam ricas histórias de caçadores e suas lendas. Em 1789, quando os privilégios foram abolidos pela Revolução Francesa, o que era uma atividade restrita à nobreza torna-se uma demanda da sociedade. E o que fora uma prática de sobrevivência, no final do século 19 vira um lazer, com a industrialização do fuzil.

Hoje qualquer cidadão francês pode ter acesso a uma permissão para matar animais. Os bichos mais frequentes na mira dos caçadores são: veados, cervos, javalis, lebres, coelhos, raposas, faisões, patos e perdizes. A lista inclui 91 espécies, o que faz da França um dos países campeões na Europa em diversidade de fauna abatida: 69 delas são de aves e mais de 20 estão em situação de risco. E o que sempre foi uma tradição, agora gera debate na sociedade. Ainda que a caça seja altamente regulamentada no país.

Um hobby regulamentado

Na França, o candidato deve seguir uma formação nas federações departamentais de caça e passar por um exame teórico e prático do Ofício Nacional da Caça e da Fauna Selvagem (ONCFS). Os menores de 16 anos podem caçar acompanhados.

Atualmente, esse é o hobby de 1,2 milhão de franceses. O país tem um dos mais longos períodos de caça da Europa, durando em média de setembro a fevereiro, com variações nos diferentes departamentos. Os tipos de animais, as quantidades abatidas e os horários são rigidamente controlados, assim como o tipo de armamento, os calibres e a distância mínima para atirar. O problema, portanto, não está na falta de regras, mas na natureza da atividade.

“O caçador é um apaixonado, ele ama o seu espaço, ele cuida do seu espaço e gerência as espécies, ele não quer dinheiro, ele simplesmente quer garantir o interesse das espécies”, afirma Nicolas Rivet, diretor-geral da Federação Nacional dos Caçadores da França.

“Se há um desequilíbrio entre as espécies, algumas podem dominar e há o risco de que outras desapareçam. Nós precisamos ter na natureza um equilíbrio entre as espécies, se não a mais forte vai se adaptar melhor e vai sobreviver em relação às outras e por isso precisamos de uma regulação”, completa.

Mas o assunto está longe de ser unanimidade. “Para nós, a caça na França não tem mais razão de ser, não tem nenhuma justificativa”, diz François Darlot , presidente da RAC, União por uma França sem Caça. “Evidentemente não é honrado dizer que se tenha prazer em matar, por exemplo. Não é algo que digamos facilmente. Então vamos encontrar justificativas, dizendo que há animais demais, e que é preciso intervir para regular, é o que eles dizem sempre”, rebate.

Nascido numa família de caçadores, Darlot denuncia um clima de insegurança no campo. “Os caçadores ocupam os espaços naturais na França. Eles se apropriam para a sua atividade e criam um clima de guerra contra a fauna. Não tem nenhum sentido declarar guerra ao mundo animal. Os animais não nos fazem mal, não nos querem mal, eles procuram simplesmente responder às suas necessidades vitais”, defende Darlot. “Mas os caçadores lhes declaram como nossos inimigos. Então eles criam um clima de guerra no ambiente rural, e colocam em risco todo mundo.  O alcance de uma bala é de 3 a 4 quilômetros”, alerta.

Segundo os números oficiais, a cada ano são registrados 180 acidentes de caça na França, vinte deles mortais.

Safari à francesa

O dia de um caçador normalmente começa cedo, quando eles se reúnem com amigos para caminhar nos bosques, acompanhados, muitas vezes, de cães especializados. Um bom almoço com o resultado da caça também faz parte dos usos e costumes arraigados na história do país.  

“Meu pai foi caçador, então eu conheço bem a questão, eu acompanho desde que sou criança”, conta François Darlot. “Na época, há 50 anos, eles eram 2,5 milhões, hoje em dia eles são cerca de 1 milhão, o número diminui mas a caça é intensa na França. Porque o caçador como meu pai, que caçava no entorno da sua fazenda, por tradição familiar, hoje em dia foi substituído pelos matadores. Gente que vem para matar, que gosta de matar os grandes animais”.

Na França, os safaris de caça em lindos castelos e florestas particulares podem ser reservados pela internet. Os anúncios combinam boa gastronomia em meio às belezas naturais.

“Eu faço caça no parque. Só para os chamados troféus. Tem gente que vem do mundo inteiro, principalmente estrangeiros, que vem para caçar os grandes animais. Existem competições mundiais, quanto maior o animal, melhor a colocação do caçador”, explica Guillaume Roques Rogery, sócio-gerente da France Safaris, localizada em Aveyron, sudoeste da França.

Criada em 2009, a empresa alcança um faturamento de € 76.840 por ano, segundo números de 2013. A diária de caça nessa propriedade privada custa € 350 e o valor cobrado para matar um animal de grande porte, como um cervo, chega a € 7.200.

“O que os ecologistas não compreendem é que a caça de troféu resulta em muito dinheiro. Na África, por exemplo, é mais rentável que todas as outras atividades”, justifica.

Um negócio bilionário

A venda de armas, roupas e equipamentos também alimenta o negócio. Para melhorar a sua imagem, os caçadores franceses passaram a investir em projetos para manutenção dos ecossistemas.

“Hoje em dia os caçadores injetam na economia cerca de 7 bilhões de euros: 3,9 bilhões diretamente do faturamento da caça e 2,9 bilhões de serviços ligados aos ecossistemas, coisas que são feitas pelos caçadores para restaurar os habitats, plantar cercas-vivas, retirar espécies invasivas de locais úmidos, todo esse aporte que é feito pelos caçadores”, explica Nicolas Rivet, da Federação Nacional dos Caçadores da França.

“Há os que dizem que caçamos muito, mas há os que dizem que não caçamos o suficiente. Então há um paradoxo nessa sociedade. Os agricultores reclamam dos estragos feitos pelos animais selvagens e nos pedem para caçar mais, tornando a regulação necessária”, insiste.

Já entidades de proteção ambiental denunciam que a caça é incompatível com outros tipos de recreação ao ar livre, dificultando o desenvolvimento do turismo ecológico e impedindo a observação da vida selvagem.

“Então, o lado econômico, talvez haja ao vender armas, roupas e cartuchos, mas o déficit econômico ligado a essa atividade é também muito importante”, diz François Darlot, presidente da União por uma França sem Caça. “Ela inibe muitas outras atividades que têm impacto econômico, elas bloqueiam, por exemplo, passeios a cavalo, caminhadas ou passeios de bicicleta. Muitas pessoas não podem visitar o ambiente natural porque os caçadores os impedem”, denuncia. “Nós não nos interessamos pela parte econômica, não é porque uma atividade é economicamente interessante que ela deva ser encorajada na sociedade”, rebate, por fim.

Criados para morrer

A cada ano, cerca de 40 milhões de animais selvagens são mortos na França.

“A maior parte dos animais que são caçados na França são selvagens. Especialmente os javalis, veados e servos. Depois tem os animais criados, às vezes, como faisão e outros pássaros”, explica Nicolas Rivet, diretor-geral da Federação Nacional dos Caçadores.

“Há certos lugares em que há uma baixa da população, então nós soltamos os animais criados em cativeiro, de maneira a repovoar o território. Isso permite manter as populações de pássaros nesses lugares e fazê-las aumentarem”, argumenta Rivet. “Na floresta, não vemos a diferença entre um animal solto na natureza ou um selvagem, em termos de voo do animal e sua capacidade de se salvar, não há nenhuma diferença”, explica.

Contudo, muitos desses bichos vivem apenas algumas horas, ou dias. A criação de animais para servirem como alvos vivos é outro ponto controverso.

“Quando falamos de regulação, os caçadores soltam 20 milhões de animais na França provenientes de criadouros. Não são números que inventamos, mas são as associações de caça que compram animais de criadouros especializados, como faisões, perdizes, patos, lebres, coelhos, e que soltam na natureza para poder manter sua paixão ou tradição, como eles dizem”, questiona o presidente da RAC.

Entidades protetoras da fauna selvagem denunciam que a libertação de animais de cativeiro enfraquece as populações naturais, perturbando os ecossistemas.

“Eles multiplicaram por 12,9, em 40 anos, os javalis mortos, por 8,4 os cervos, por 9 os veados a cada ano. Então quer dizer que em 1976, por exemplo, nós matamos 60 mil javalis no território francês. Em 2016, 40 anos mais tarde, nós matamos 700 mil. Então isso não aconteceu por acaso”, afirma François Darlot. São os caçadores que organizaram a expansão de populações. E vai continuar, porque eles precisam”.

 

A Associação pela Proteção dos Animais Selvagens (Aspas) investigou alguns desses criadouros. Os vídeos mostram as condições de reprodução de 14 milhões de faisões e 5 milhões de perdizes criados para abastecer a caça. Em gaiolas individuais minúsculas ou em grandes aviários, os animais podem passar horas na escuridão contínua ou sob luz artificial, são mutilados, vítimas de colisões e asfixia por confinamento.

Quando finalmente são libertados, os que escapam das balas dificilmente sobrevivem por dificuldade de adaptação à vida selvagem, não sabem se alimentar ou se proteger, como explicam os pesquisadores que lançaram uma petição pedindo a interdição desses locais.

Pelo lado ético, as sociedades protetoras dos animais destacam trabalhos científicos comprovando que que os animais são seres sensíveis. Inúmeras pesquisas já demonstraram que mamíferos e aves, por exemplo, compartilham o nosso universo sensorial e emocional, experimentando sentimentos, vontades, medo e sofrimento.

“Quando é atingido por uma bala o animal morre, ele não sofre.  O objetivo de todo o caçador não é ferir o animal, nós não queremos que eles sofram”, afirma Guillaume Rogery. “Quando caçamos um animal na minha propriedade, o fazemos com ética. Nós nos aproximamos, o animal tem quase a mesma chance que nós, a diferença é que temos uma carabina, mas ele tem sua chance de fugir. É um esporte nobre, quer dizer, se a gente tira uma vida então é preciso ter respeito. Não é à toa que esse era um esporte de reis”, conclui.  

Um poderoso lobby

Para entidades como a União por uma França sem Caça não há dúvidas de que os caçadores constituem um poderoso lobby para defender ambições privadas contra o interesse geral da população, impondo legislação discordante dos desejos e expectativas da maioria.

“Hoje em dia os defensores da natureza, aqueles que amam os animais e que querem protegê-los em vez de destruí-los, são muito mais numerosos do que os caçadores. E mesmo assim os políticos não estão nem aí para a natureza, o equilíbrio natural, e mesmo a ética. O que lhes interessa é o poder político, e eles erram, porque os caçadores são pouco numerosos. E a população é cada vez mais hostil a essa atividade” diz François Darlot, presidente da RAC.

A caça pode ter sido a gota d'água para a renúncia do ex-ministro da Transição Ecológica da França, Nicolas Hulot, um famoso defensor da natureza. Ele deixou o cargo depois de uma reunião no Palácio do Eliseu, em agosto passado, para tratar da futura reforma da caça. Prevista para o ano que vem, ela tem sido criticada pelos defensores dos animais por supostamente colocar em risco espécies hoje protegidas.

À época, diante de representantes dos caçadores, o presidente da República, Emmanuel Macron, reiterou o seu apoio à prática da caça, concordando em diminuir o preço da licença nacional pela metade: de €400 para €200.

Em pleno século XXI, para uma parte dos cidadãos franceses, a caça é indigna da civilidade atual, e por isso condenável. Por outro lado, a tradição e o equilíbrio do meio rural são os argumentos mais usados por aqueles que defendem essa atividade.

“Antes, todas as espécies animais faziam migração, elas se regulavam naturalmente. Mas hoje, com toda a infraestrutura que os homens criaram, elas não podem mais fazer isso. Então, hoje, se as populações não são gerenciadas pelo homem, elas explodem. É o que acontece nesse momento na França com os javalis”, afirma Guillaume Roques Rogery, da France Safaris. “Na França os caçadores são mal vistos. Não temos mais jovens caçadores, pois se você é um jovem caçador e você diz na escola que caça, você é massacrado. Hoje as pessoas têm vergonha de caçar, enquanto não deveria ser uma vergonha, mas um orgulho, pois é a melhor ferramenta de conservação da fauna que existe”, defende.

“Os franceses acreditam ainda que é um mal necessário, que é preciso que regule, como eles dizem. A mídia repete o discurso dos caçadores, portanto falta informação. Mas quando as pessoas se dão conta de que não é isso, que a regulação pela caça é uma farsa, elas compreendem e dizem que isso não serve a nada”, conclui François Darlot, da RAC.

Enquanto isso, propostas como o desenvolvimento de corredores biológicos para a vida selvagem, supervisionados por especialistas, convivem com o uso do rifle para resolver os problemas do campo.

 

 

 

 

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