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Um pulo em Paris

Adoção forçada de reforma da Previdência cria incerteza sobre futuro de Macron

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A aprovação da reforma da Previdência por meio de um artigo constitucional, sem votação no plenário da Assembleia de Deputados, abriu uma crise política e social na França. A oposição apresentou nesta sexta-feira (17) duas moções de censura contra o governo da primeira-ministra Élisabeth Borne. A votação dos textos está prevista para a próxima segunda-feira (20).

A primeira-ministra francesa, Élisabeth Borne, irá enfrentar moções de censura no Parlamento depois de acionar artigo constitucional considerado antidemocrático para aprovar reforma da Previdência.
A primeira-ministra francesa, Élisabeth Borne, irá enfrentar moções de censura no Parlamento depois de acionar artigo constitucional considerado antidemocrático para aprovar reforma da Previdência. REUTERS - PASCAL ROSSIGNOL
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A França tem um sistema político diferente dos demais sistemas parlamentaristas na Europa. Existe um Parlamento eleito pela população, com Assembleia de Deputados e Senado, um primeiro-ministro nomeado pelo presidente, geralmente representante do partido com mais deputados eleitos na Assembleia. 

Porém, a Constituição de 1958 dá prerrogativas poderosas tanto ao presidente eleito quanto ao chefe de governo, quando o Executivo quer adotar uma legislação não consensual entre os deputados, ainda que ela tenha tido aprovação do Senado. O artigo 49 alínea 3 da Constituição francesa permite a adoção de leis sem a votação dos deputados.

Foi exatamente o que aconteceu na quinta-feira (16), uma data que entrará para a história do país. Vendo que a aprovação da reforma, que eleva a idade mínima da aposentadoria de 62 para 64 anos, poderia ser rejeitada na Assembleia, Macron e a primeira-ministra Élisabeth Borne decidiram acionar o artigo 49.3. 

Esse mesmo artigo constitucional, na alínea seguinte, dá aos deputados o direito de apresentar uma moção de censura, ou seja, a possibilidade de destituir o governo. Para isso, a moção deve ser aprovada por maioria simples na Assembleia. 

Na tarde desta sexta-feira, um grupo de deputados independentes apresentou uma moção de censura suprapartidária contra o governo, também assinada pela coligação de esquerda Nupes. O texto será submetido ao plenário da Assembleia na próxima segunda-feira (20), com o objetivo de destituir o gabinete da primeira-ministra Élisabeth Borne

O partido de extrema direita de Marine Le Pen (Reunião Nacional – RN) encaminhou uma segunda moção de censura, mas é a proposta dos independentes que tem mais chances de reunir o apoio de parlamentares de todas as legendas de oposição, inclusive do partido de direita Os Republicanos (LR), que rachou e tornou a votação da reforma no plenário da Assembleia incerta para o governo.  

Para a primeira-ministra perder seu mandato, são necessários os votos de 287 deputados entre os 573 que compõem atualmente a Assembleia. Assim como a votação da reforma da Previdência dependia dos deputados do partido de direita LR, a continuidade ou o fim do governo de Élisabeth Borne está nas mãos deste partido, que está dividido. 

Por enquanto, parece remota a formação dessa maioria de 287 votos para derrubar o governo. Mas este cenário pode evoluir nas próximas horas.  

Um aspecto importante para destacar é que o Parlamento francês não tem poder para retirar o presidente Emmanuel Macron da presidência. Só ele pode decidir sobre uma eventual renúncia, o que por enquanto não está em perspectiva. 

Afronta à democracia

Desde a reeleição de Macron, em maio passado, se instalou um mal-estar entre o presidente e a população. Os franceses votaram novamente em Macron para evitar que a rival de extrema direita, Marine Le Pen, chegasse ao poder. Ao mesmo tempo, os eleitores colocaram uma oposição forte na Assembleia, com a expectativa de impor ao governo negociações a cada projeto de lei e a busca de compromissos políticos. 

O problema é que Macron tem um perfil tecnocrata e age com certa arrogância. Ele se vê como um líder corajoso, reformista e não admite ser contestado, principalmente por protestos nas ruas. Para ampliar a tensão, o presidente já disse considerar o movimento sindical francês radical e atrasado.

Na visão do líder centrista, vencer a nacionalista Marine Le Pen duas vezes lhe deu legitimidade para reformar o país. Mas não é assim que os franceses veem as coisas.

Desde o lançamento do projeto de reforma previdenciária, em outubro passado, a primeira-ministra optou por negociar apenas com a bancada de 62 deputados da direita republicana, desprezando o diálogo com as lideranças sindicais, sempre com o aval de Macron. Os dois cometeram o erro político de apostar somente nos votos da direita, além de não terem percebido que depois do movimento dos coletes amarelos, os sindicatos franceses estavam em busca de uma oportunidade para reconquistar a confiança dos trabalhadores. O impopular projeto de reforma das aposentadorias sedimentou a reaproximação dos sindicatos, que se uniram contra o texto.

O presidente Macron e a chefe do Executivo recorreram 11 vezes ao artigo constitucional 49.3 nos últimos meses. É um estilo de governança que fere os princípios democráticos e fortalece os extremos, de direita e esquerda.

Custo político alto para benefício reduzido

Em 2022, a Previdência francesa teve um superávit de 3,2 bilhões de euros, o equivalente a cerca de 0,1% do PIB francês. De acordo com projeções do Conselho de Orientação das Aposentadorias (COR), um organismo independente que faz projeções para as autoridades e economistas, o sistema será déficitário de 2023 a 2027, com um rombo estimado de 12,5 bilhões de euros.

Macron usa esses números para defender a reforma. Ainda acena com o estouro da dívida pública, a maior da história do país, de 113% do PIB em 2023, cerca de 3 trilhões de euros, e a necessidade de investimentos do Estado em setores essenciais. 

Inicialmente, a reforma deveria dar ao Estado 17,7 bilhões de euros, ou seja, um valor superior ao déficit esperado. Mas com as concessões feitas durante a tramitação do projeto, os ganhos da reforma caíram para 11,3 bilhões de euros. 

Há meses economistas, sindicalistas, opositores e a imprensa apontam incoerências no projeto de lei e propõem alternativas para reequilibrar o sistema previdenciário. Em várias ocasiões, os franceses disseram que preferiam aumentar o recolhimento, ter maior desconto nos salários, a trabalhar por mais tempo. Mas aumentar a idade mínima se tornou um dogma para Macron, que pretendia demonstrar força para os vizinhos europeus. Assim, elevar a idade mínima para 64 anos se tornou a única opção nos planos do presidente, mas também a mais violenta para a população.

Macron se colocou em uma situação difícil. Se a moção de censura não vingar na Assembleia na semana que vem, ele pode tentar uma reforma ministerial. A primeira-ministra Élisabeth Borne sai dessa sequência muito fragilizada. Mas mudar de chefe de governo sem mudar a forma de fazer política não vai levar o centrista muito longe. Com maioria relativa na Assembleia, muitos acreditam que o presidente inviabilizou a aprovação de novas reformas no Parlamento.

Os próprios deputados macronistas estão muito descontentes. Eles defendiam a votação da reforma no plenário da Assembleia e têm a impressão de não serem ouvidos para nada. Eles estão sendo escoltados por policiais desde ontem, tamanha a tensão social no país. 

No cenário mais radical, Macron pode dissolver a Assembleia e convocar novas eleições legislativas. Mas as pesquisas apontam para resultados perigosos. A extrema direita seria a mais beneficiada e poderia aumentar ainda mais sua bancada na Assembleia. Ninguém imagina Macron presidindo o país com um chefe de governo de extrema direita.

Por isso, a crise política tende a durar vários meses.

Uma nova greve nacional já foi convocada pela frente sindical para a próxima quinta-feira (23), assim como outras paralisações setoriais, de professores, nos transportes e refinarias de petróleo. A queda de braço será longa, com possibilidade de apresentação de recursos de inconstitucionalidade da reforma, entre outras manobras em estudo pela oposição.     

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