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Um pulo em Paris

Série de casos de violência contra mulheres e meninas expõe falhas de proteção na França

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Nas últimas semanas, uma série de casos escabrosos de violências sexistas e sexuais, dois deles envolvendo sequestro, estupro e assassinato de meninas de 12 e 14 anos de idade, na saída da escola, mostram quanto está complicado para a sociedade francesa avançar no respeito e, principalmente, na proteção das mulheres, apesar do ativismo incansável dos grupos feministas. 

Protesto de feministas em Paris, em frente à antiga sede do Palácio de Justiça, denunciou a grande quantidade de casos de violência sexual e sexista arquivados nas varas criminais, empilhados em caixas, por falta de juízes para analisá-los. "Nossas vidas arquivadas sem acompanhamento", diz a colagem. 23 de novembro de 2022.
Protesto de feministas em Paris, em frente à antiga sede do Palácio de Justiça, denunciou a grande quantidade de casos de violência sexual e sexista arquivados nas varas criminais, empilhados em caixas, por falta de juízes para analisá-los. "Nossas vidas arquivadas sem acompanhamento", diz a colagem. 23 de novembro de 2022. AFP - BERTRAND GUAY
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Quase diariamente, a imprensa francesa relata feminicídios, abusos e agressões cometidos nas circunstâncias mais inacreditáveis, expondo quanto a violência contra as mulheres e meninas ainda é arraigada e afeta toda a sociedade. Os hospitais franceses são palco de violência contra as mulheres, escolas, universidades, o meio artístico e político.  

Até a terça-feira passada, o movimento feminista que usa a hashtag #NousToutes (Nós Todas, em tradução livre) nas redes sociais já contabilizava 121 feminicídios – mulheres mortas por seus maridos ou ex-companheiros –, um número quase equivalente ao do ano passado. Em 2021, 122 feminicídios foram registrados em todo o país. 

Na quarta-feira (23), uma mulher de 34 anos prestou queixa na delegacia depois de ser estuprada no pronto-socorro de um estabelecimento da rede pública em Paris, o Hospital Cochin. Ela estava em observação, dormindo, depois de sofrer uma queda e bater com a cabeça na calçada. Subitamente, a enfermagem de plantão ouve os gritos dela, que acordou sendo penetrada pelos dedos de um homem de 22 anos. O indivíduo fugiu, mas foi preso uma hora mais tarde.

Como ele entrou no pronto-socorro? A história dá um filme. O suspeito acompanhou o atendimento que a mulher recebeu do Samu na calçada onde ela havia caído. Pouco tempo depois dela ser levada para o hospital, o indivíduo telefonou para o Samu fingindo que estava à beira de um coma etílico, mas estava drogado, como as análises comprovaram depois. Os paramédicos levaram, então, o homem para atendimento no mesmo hospital do setor. Ao chegar no pronto-atendimento do mesmo estabelecimento público, ele procurou o quarto da mulher e violentou a paciente. O suspeito premeditou a agressão contra a mulher que tinha visto na rua.

O homem detido é um jordaniano que recebeu três ordens das autoridades da Imigração para deixar o território francês e não cumpriu a determinação. A vítima prestou queixa não só por estupro, mas para saber como um paciente pode estar sujeito a agressões dentro de um hospital, um local onde a pessoa vai para ser cuidada. Na França, o hospital público é de todos, não só da população carente. 

Este, infelizmente, não é o primeiro caso desse tipo. Em setembro, um sem-teto de 27 anos estuprou uma idosa e uma menor de 15 anos em um hospital de Nanterre, na periferia de Paris.

Apesar de haver uma tendência a se misturar os assuntos, seja para estigmatizar estrangeiros ou a pobreza, o denominador comum nesse tipo de violência não é a condição social do agressor, mas, sim, o histórico de relações assimétricas de poder e dominação de homens contra mulheres e meninas. 

Violência ginecológica 

As denúncias de violências praticadas por médicos e parteiras têm aumentado no país. Nesta semana, o ginecologista francês Emile Darai, que trabalhou durante anos como especialista em endometriose em um hospital público parisiense, foi proibido pela Justiça de atender em consultório particular, meses depois de ter sido afastado de suas atividades no Hospital Tenon.

Há cerca de um ano, ele foi indiciado por estupro de menor de 15 anos e violência nos exames ginecológicos realizados em 32 pacientes naquele hospital. Duplamente traumatizadas, devido às dores causadas pela doença e a brutalidade do médico, elas o denunciaram à Justiça. Mas o ginecologista ainda não foi julgado.

O caso desse médico é o exemplo típico do homem que ocupa uma posição de poder e se vê fora do alcance da lei: auxiliares e estudantes que ele formou conheciam o comportamento dele com as pacientes, mas não o denunciaram com medo de serem prejudicados na carreira.

No cinema, a história se repete

O movimento #Me Too, que acaba de completar cinco anos, sem dúvida escancarou a extensão dos abusos. A adesão de artistas, jornalistas e mulheres corajosas de todas as categorias sociais, que revelaram momentos traumáticos de sua intimidade, teve impacto positivo na opinião pública, mas ainda acontecem situações no próprio meio artístico difíceis de entender. 

Nesta sexta-feira (25), Dia Internacional de Luta para Eliminação da Violência contra Mulheres, o jornal Libération traz em manchete de capa o caso do jovem ator francês Sofiane Bennacer, 25 anos. Ele é o protagonista do filme "Amandiers", que conta a história de um grupo de teatro francês criado na década de 1960. O longa-metragem estreou na semana passada nos cinemas franceses.

Desde outubro de 2021, Bennacer é investigado pela Procuradoria de Mulhouse (leste) por estupros e atos de violência sexual denunciados por quatro ex-namoradas. Na reportagem publicada hoje, mais duas mulheres dizem que também foram vítimas de relações sexuais forçadas e violentas com o ator. 

Isso não impediu a diretora do filme, Valeria Bruni-Tedeschi – irmã da cantora e ex-modelo Carla Bruni – de contratar Bennacer para o papel principal do longa. Algumas jovens que trabalhavam na produção, quando souberam da investigação, questionaram a diretora. Mas Tedeschi justificou a contratação do ator alegando o princípio da presunção de inocência. Uma parte do pessoal da produção do filme pediu demissão, por considerar que não é mais possível ignorar várias denunciantes. 

Procurada pelo Libération, a diretora não quis se pronunciar. Mas quando uma mulher protege um homem suspeito de estupros repetidos, é um sinal do mal-estar que ainda existe na sociedade sobre essas relações de poder.

Deputado denunciado por violência doméstica

O deputado Adrien Quatennens, do partido França Insubmissa (LFI), de extrema esquerda, foi denunciado por violência conjugal pela mulher, nesta semana, meses depois de uma deputada da mesma bancada, mas ecologista, ter revelado o caso à imprensa. O casal está em instância de divórcio.

Quatennans atuava como líder da bancada de um partido que tem forte compromisso com as causas feministas e só se afastou temporariamente da função depois de muita pressão da mídia e de colegas parlamentares. O padrinho político de Quatennans, Jean-Luc Mélenchon, que disputou a presidência francesa, tentou proteger o afilhado por todos os meios, em uma situação que criou desconforto para a esquerda. O deputado nega as acusações feitas pela ex-mulher. Ele apenas admitiu que deu um tapa na cara dela no calor de uma briga do casal.

Até hoje, 80% das mulheres vítimas de violência familiar na França não denunciam os abusos à polícia e 90% das vítimas de estupro não prestam queixa, de acordo com associações feministas. Por causa desse silêncio, apenas 1% dos agressores são condenados nos tribunais.

As feministas reconhecem que o poder público melhorou o treinamento de policiais para acolher as denúncias nas delegacias, mas as vítimas são insuficientemente amparadas pela Justiça, principalmente pelo número escasso de juízes.

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