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Livro que Lídia Jorge nunca imaginou escrever, 'Misericórdia' traz reflexões também inesperadas

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Lídia Guerreiro Jorge, um dos nomes de maior relevância da literatura portuguesa das últimas décadas, volta à França para divulgar seu novo livro, 'Misericórdia', lançado originalmente em português em 2022 e este ano traduzido para o francês. A obra é uma homenagem à sua falecida mãe dona Maria Alberta, uma das primeiras vítimas da Covid-19, em Portugal, no começo da pandemia.

A ilustre escritora Lídia Jorge nos estúdios da RFI, em Paris, em 12 de setembro de 2023.
A ilustre escritora Lídia Jorge nos estúdios da RFI, em Paris, em 12 de setembro de 2023. © RFI/Miguel Martins
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Luiza Ramos, da RFI

Premiada e aclamada em diversos países, condecorada em Portugal com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique, e na França, como Dama e Oficial da Ordem das Artes e das Letras, a escritora e professora Lídia Jorge lançou seu primeiro livro, 'O Dia dos Prodígios' em 1980, e desde então foram cerca de 30 publicações e uma extensa lista de prêmios e distinções. 

Após menos de um ano do lançamento de Misericórdia, a obra já recebeu o Grande Prêmio de Romance e Novela 2022 da Associação Portuguesa de Escritores (APE), e poucos meses após traduzido para o francês, foi rapidamente laureado como Melhor Livro Lusófono publicado na França.

Em entrevista à RFI, Jorge é modesta: "é uma grande alegria (...) quando aparece um prêmio demostra que alguém ou muitas pessoas leram e acharam que ele merecia, e que foi bom partilhar aquilo que foi seu imaginário com os outros".

Para ela, a obra ocupa um lugar único em sua trajetória como escritora, por ser um texto que nunca havia cogitado. "Nunca escrevi um livro assim e também nunca mais escreverei um livro assim. Ocupa um lugar muito especial, 'Misericórdia' é um livro que um nunca imaginei que iria escrever", constata.

Trata-se de um material baseado em quase 40 horas de áudios de dona Maria Alberta Nunes Amado, mãe da escritora, que registrou histórias e pensamentos durante um ano usando um pequeno gravador de pilhas, até antes de morrer no começo da pandemia em abril de 2020. Apesar da grande experiência como autora, a professora conta algumas das dificuldades que enfrentou para colocar as memórias de sua mãe no papel:

"No princípio eu não sabia bem o que fazer porque o título era demasiado exigente, solene, religioso e filosófico também (...) Mas quando comecei a juntar os elementos que tinha, desse último ano da vida [de dona Maria Alberta], eu pensei que poderia fazer uma homenagem, não para quem tinha partido (...) Mas para quem tinha ficado", revela Lídia Jorge.

"Eu escrevi esse livro falando da capacidade de resistência e capacidade de alegria (...) capacidade de manter o respeito pela juventude e perceber como que essa juventude prolonga aquilo que foi o passado como uma bandeira para o futuro", declara a autora. 

Problemática dos asilos de idosos 

'Misericórdia' foi escrito após o falecimento de dona Maria Alberta como uma forma de partilha do luto de Lídia, que não pôde viajar ao sul de Portugal enterrar a mãe, por conta dos fechamentos causados pelo início da pandemia. Entretanto, o livro não traz em sua narrativa tristeza ou morbidez. "Eu senti que aquilo que poderia ser um luto, eu estava a transfigurar em alguma coisa que poderia ser uma partilha", sublinha. 

A obra mistura os áudios gravados pela idosa às histórias de vida lembradas por sua filha e escritora, que foi capaz de construir uma narrativa baseada em realidade e com pitadas generosas de ficção. Os áudios deixados por dona Maria foram feitos enquanto ela morava em um lar de idosos situado na cidade de Loulé, no sul de Portugal. 

A partir desse contexto, mesmo sem ter tido a clara intenção, Lídia evidencia a problemática da questão migratória em Portugal e as condições de trabalho precárias oferecidas aos estrangeiros, inclusive muitos brasileiros que migram em busca de oportunidades no país irmão.

Lídia Jorge, autora de Misericórdia
Lídia Jorge, autora de Misericórdia © RFI

Uma das personagens importantes da trama que interage emocionalmente com a condutora principal da trama, é uma cuidadora jovem, oriunda do norte do Brasil e que está grávida. Outras personagens que trabalham na casa de repouso são latinas e algumas cenas descritas na obra acabam revelando bastidores de maus tratos aos idosos indefesos. 

"O que eu quis antes foi mostrar uma batalha pela vida que existe nesses locais. Mas naturalmente, ao reconstituir aquilo que era a vida diária numa dessas instituições, sem ser minha intenção, acabei por descrever situações que acontecem e que são penosas e que merecem ser corrigidas", referindo-se às condições de trabalho delicadas nos lares de idosos.

Obra de Lídia Jorge

Lídia Jorge foi considerada "a maior romancista portuguesa da atualidade" pela revista francesa Le Point. Ela já foi citada no jornal argentino Clarín como detentora de "uma carreira literária marcada pela originalidade e sutileza do seu estilo, independência de julgamento e imensa humanidade", em 2020, ano em que teve destaque e venceu o principal prêmio na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no México.

Seus dois primeiros romances - O Dia dos Prodígios (1980) e O Cais das Merendas (1982) - a consagraram como uma das melhores autoras portuguesas contemporâneas. Desde então, sua produção literária, essencial para a literatura mundial, fez dela uma candidata constante ao Prêmio Nobel de Literatura.

Perguntada se sua obra é feminista, por trazer constantemente mulheres fortes como personagens de relevo, a escritora afirma não ser adepta do que chama de 'militância'. 

"É impossível uma mulher escritora não estar atenta e próxima àquilo que ela própria na vida faz. Portanto, quando me perguntam se meu livro é feminista. [Digo que] é profundamente feminino. [A obra] é a favor que se dê voz às mulheres", resume Lídia Jorge.

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