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Livro editado na França explora a influência de Nelson Pereira dos Santos na criação de um "cinema nacional"

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“Nelson Pereira dos Santos e a Invenção de um Cinema Nacional”, é o título do livro que a brasileira Deise Ramos acaba de publicar, em francês, pela editora L’Harmattan. Em entrevista à RFI, ela fala sobre seu trabalho de pesquisa sobre um dos precursores do Cinema Novo, membro da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2018, aos 89 anos de idade.

Deise Ramos, autora do livro "Nelson Pereira dos Santos e a invenção de um cinema nacional"
Deise Ramos, autora do livro "Nelson Pereira dos Santos e a invenção de um cinema nacional" © RFI
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Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre Nelson Pereira dos Santos?

Eu cheguei na França em 2007, depois de experiências anteriores com o teatro, no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui fiz essa transição para o cinema, mas quase levei um susto ao descobrir que um cineasta com uma história tão importante para o cinema brasileiro, como o Nelson Pereira dos Santos, ainda é pouco estudado por aqui. Não encontrei aqui na França nenhuma tese, nenhum livro, especificamente sobre o Nelson Pereira dos Santos. Muita gente ainda acha que o cinema no Brasil começou com Glauber Rocha, por exemplo, ou com o Cinema Novo, de um modo geral, quando na verdade foi o contrário: primeiro, veio o Nelson, com o “Rio 40 Graus”! Depois é que vieram todos os outros...  O Nelson foi o precursor do movimento revolucionário do cinema brasileiro chamado " cinema Novo”. Antes mesmo de ter uma câmera em suas mãos, ele já havia pensado em novo cinema.

O livro é o resultado de quase sete anos de estudos e pesquisas que desenvolvi na Universidade Paris 8, no curso de estética e memória do cinema, sob a orientação do professor Mathias Lavin, que também escreveu o prefácio. O curso de cinema da Paris 8 é uma referência internacional, cujas origens remontam a 1968, e que teve como professores filósofos como Gilles Deleuze e Michel Foucault. Eu me sinto honrada duas vezes: de ter estado na Universidade Paris 8 e ter sido publicada pela editora Harmattan.

Por que você fala em “invenção de um cinema nacional”? Qual o papel do Nelson, nesse sentido?

“Rio 40 Graus”, que é um filme de 1954, só chegou nos cinemas em 1955, porque foi censurado pela polícia do Rio de Janeiro, que era ainda a capital do Brasil. A primeira grande contribuição do Nelson ao cinema brasileiro aconteceu antes mesmo dele começar a fazer seu primeiro filme longa-metragem. Em março de 1952, quando foi realizado o Primeiro Congresso Paulista de Cinema Brasileiro, ele apresentou uma reflexão sobre o que ele chamava de “O Problema do Conteúdo no Cinema Brasileiro”. Durante as minhas pesquisas, não encontrei nenhuma análise desse documento, nem mesmo no Brasil! Mas existe um fac-símile no acervo digital do Alex Vianny, um outro cineasta da mesma geração do Nelson, que fez um ótimo trabalho sobre a história do cinema brasileiro. E eu fiz a transcrição desse texto, na íntegra, no meu livro. Para Nelson, no início dos anos 1950, o cinema brasileiro não mostrava o povo brasileiro como um todo, não falava suas verdadeiras histórias, seu cotidiano, suas lutas e esperanças.

E o que o Nelson diz nesse documento?

Na minha opinião, esse documento é uma espécie de certidão de nascimento do Cinema Nacional Brasileiro, que a partir daí nos deu tantos grandes filmes, desde “O Pagador de Promessas”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Vidas Secas”, até mesmo os mais conhecidos hoje em dia, como “Central do Brasil” e “Cidade de Deus”, por exemplo. Cada um desses filmes, além da qualidade técnica e estética, nos toca fundo e nos emocionam, porque sabemos que cada uma daquelas cenas é um pedaço da sucessão de dramas e alegrias que fazem a nossa história pessoal, e também a história do país. Então, quando o Nelson escreve o roteiro de “Rio 40 Graus”, ele faz uma revolução na maneira como o povo brasileiro é representado nas telas de cinema. A população do morro é mostrada como uma gente simples, mas também muito trabalhadora e solidária, enquanto que uma parte da burguesia e da classe média é injusta, preconceituosa e cruel.

Qual a importância para de se falar sobre o Nelson Pereira dos Santos, hoje em dia, na França?

A França é um país que valoriza o cinema como poucos, com a Cinemateca Francesa, os centros culturais e as universidades. Paris, a propósito, foi muito importante para a carreira profissional do Nelson. Em 1949, quando ainda era um jovem estudante de Direito, ele juntou suas economias para comprar um bilhete de navio para vir para cá. A viagem demorou mais de um mês, mas aqui em Paris ele conheceu Henri Langlois, diretor da Cinemathèque; conheceu o documentarista holandês Joris Ivens; conheceu brasileiros que já estudavam cinema aqui; e também assistiu a muitos filmes, especialmente os primeiros clássicos do neorrealismo italiano, como “Roma, cidade aberta”, “Ladrões de bicicleta”, “A Terra treme”... Quando ele voltou ao Brasil, já estava decidido que ele queria fazer filmes. E a França sempre teve um papel de apoio ao Nelson. Quando “Rio 40 Graus” foi proibido no Brasil, vários intelectuais e artistas se mobilizaram em favor de sua liberação, mesmo sem terem visto o filme. O crítico André Bazin, que assistiu o filme durante uma viagem à América do Sul, em 1956, escreveu no Cahiers du Cinéma que era um filme que merecia ser visto na Europa.

Mais tarde, já reconhecido por vários outros filmes, Nelson continuou a ser homenageado na França. Ele foi designado “Comandante da Ordem das Artes e Letras da República Francesa”, recebeu o grau de “Cavaleiro da Legião de Honra”, e também o título de “Doutor Honoris Causa” da Universidade de Paris 10 – Nanterre. O Cinema brasileiro, desde o começo nasceu, morreu e ressuscitou várias vezes. Parece-me importante relembrar um momento-chave para a cultura no Brasil. Aquele em que diretores como Nelson se comprometeram em representar nas telas as múltiplas faces de uma sociedade fragmentada pela coexistência de extremos de riqueza e de miséria.

No seu livro, você aborda dois filmes: “Rio 40 Graus” e “Vidas Secas”. O que você poderia acrescentar sobre esses filmes?

“Vidas Secas” é um exemplo do acerto das ideias que o Nelson teve lá atrás, em 1953. O filme se baseia num romance clássico, fundamental na literatura brasileira, de Graciliano Ramos, escrito nos anos 1930. Quando Nelson faz o filme, em 1963, ele está colocando na tela uma história que praticamente todos os brasileiros conhecem, mesmo os que nunca viram o sertão. Na mesma época, Glauber Rocha fazia “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, outro filme que se refere à história do Brasil e ao problema da seca e fome. Quando os dois filmes são projetados em Cannes, em 1964, o sucesso foi imenso! Os jornalistas começam então a falar em Cinema Novo, e daí para frente é uma história que todos conhecem bem.

Duas cenas, em particular, resumem o talento cinematográfico de Nelson, em Vidas Secas: o momento em que a mãe de família, sem ter o que comer, mata o papagaio de estimação; e a morte da cadela Baleia, delirando de fome. Infelizmente, porém, no Brasil acontece ao mesmo tempo o golpe militar de 1964. Fazer cinema do jeito que Nelson imaginava fica difícil, faltam recursos. Esse problema se repetiu várias vezes: nos anos 1980, com a crise econômica; nos anos 1990, com o confisco do Plano Collor; e agora, nesse momento tão difícil por que passa o Brasil, em que a cultura é vista como alguma coisa sem qualquer valor, sem importância...

E qual o papel desses filmes, que já tem 60, 70 anos, para o cinema de hoje?

Além de todos os aspectos estéticos e narrativos, esses filmes continuam a tocar muito fundo. Todos os grandes diretores de cinema brasileiro manifestam a dívida que têm com o Nelson Pereira dos Santos. Por quê? Porque esses filmes falam de uma realidade que só fez piorar de lá para cá. O Brasil é um país que tem dificuldade para incorporar plenamente essa parcela da população mais humilde à sociedade.

Quando vemos os filmes que vieram em seguida, vemos que eles também mostram uma realidade do Brasil, só que muito piorada. Penso num “Pixote”, por exemplo, e também em” Cidade de Deus” ou “Tropa de Elite”. Essas histórias não são fruto de uma imaginação delirante ou perversa. Ainda há poucas semanas, a polícia executou mais de vinte moradores numa favela do Rio de Janeiro, e essas histórias se repetem em diversas cidades país afora. Para deixar o cenário ainda mais complicado, temos um governo que não se interessa por nada disso. Eu, que trabalho com história e memória do cinema, portanto, não posso aceitar o que acontece com a Cinemateca Brasileira, por exemplo. Abandonada, sem funcionários, sem manutenção... Quantos filmes mais serão definitivamente perdidos? Espero que não demore muito para a situação no Brasil voltar ao normal.

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