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"Sou um maluco, um delirante": Ignácio de Loyola Brandão revê sua obra e pensa o Brasil de 2021

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Aos 84 anos e mais de 40 livros, entre romances, contos, peças de teatro e reportagens, o escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão mantém a receita dos mestres quando chegam ao topo de sua caminhada: humor, lucidez, doçura e uma indefectível gota de esperança. Em entrevista à RFI, ele passeia com estilo entre assuntos variados, desde sua infância em Araraquara até a pandemia e o "desgovernado" Brasil de 2020. Solar e generoso, Ignácio solta o verbo com a alegria do menino de outrora, hoje imortal da Academia Brasileira de Letras, vencedor do Jabuti e do Prêmio Machado de Assis.

O escritor Ignácio de Loyola Brandão, em 2016.
O escritor Ignácio de Loyola Brandão, em 2016. © Divulgação / http://ignaciodeloyolabrandao.com.br/
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RFI: Em "Não verás país nenhum", de 1981, ou seja, há 40 anos, você parecia já descrever o Brasil de 2021...

Ignácio de Loyola Brandão: É muito curiosa a história desse livro. Eu uma vez encontrei Nelson Rodrigues, nos anos 1960, na redação do Última Hora. Ele estava escrevendo mais uma daquelas crônicas diárias que ele fazia, que eram fantásticas, do A Vida Como Ela É. Perguntei a ele, muito tímido, falei: "Como você consegue escrever por dia uma crônica dessas, que é lida e que é a realidade brasileira?". Ele me olhou, ele era muito estranho e muito interessante, e falou: "Olhando pela janela, meu filho. Olhaí que você vê tudo". Então quando nos anos 1970 eu comecei a abrir os jornais, as revistas, ver o noticiário, eu via falar de aquecimento global; que a falta de petróleo não seria o problema, mas sim a falta da água. Quando os tsunamis começaram a devastar países, quando via as comidas nas lanchonetes, McDonald's, aquela comida falsa, fictícia, começou a vir na minha cabeça uma coisa assim: e se a gente vivesse numa época sem água, sem o Amazonas, e o Amazonas já é deserto... Comecei a exagerar à centésima potência tudo o que podia acontecer... E aí me veio essa de um país sem água, sem florestas, onde o sol mata as pessoas, em que as doenças mais estranhas começam a aparecer. Eu estava me divertindo e me torturando, porque era muito difícil escrever esse livro. Quando eu terminei, falei: ninguém vai ler. Acabou virando um clássico e vendeu mais de 1 milhão de exemplares nestes 40 anos.

RFI: O leitor parece acompanhar a viagem do escritor neste delírio utópico, nesta projeção futurista, não?

Ignácio de Loyola Brandão: Exato, porque o leitor de hoje em dia começa a ver livros muito cedo. Perguntam: "ah como você adivinhou? Você é vidente?". Eu digo que não, que sou um maluco, um delirante. Você tem que ser delirante, você tem que ser a fantasia presente. Eu nunca me esqueço da primeira professora que eu tive, quando eu tinha 7, 8 anos e tínhamos que fazer redação, lá em Araraquara... Eu inventei um dia uma girafa com um pescoço de 500 metros. Ela me deu 100, a nota máxima. Um colega retrucou dizendo que eu havia escrito uma mentira. E ela respondeu: "Ignácio não escreveu uma mentira, ele fez uma fantasia", então ela disse uma frase que eu nunca mais esqueci: "a fantasia, meu filho, vai te ajudar a suportar a vida". E é isso que eu faço. Aquela professora dos anos 1940, que nunca tinha lido Piaget nem ninguém, intuitivamente soube formar um escritor.

RFI: Você também é jornalista, chegou a trabalhar no Última Hora, o icônico jornal criado por Samuel Wainer. O jornalismo mudou muito de lá para cá. Vendo a profusão das fake news nas redes sociais, como você vê o jornalismo hoje?

Ignácio de Loyola Brandão: Não se sabe mais onde se produz a notícia. Dá para se atemorizar com a quantidade de notícias falsas --as tais fake news-- que se esparramam pelo mundo. Não é só o Brasil, é o mundo. Então, você tem dois universos hoje, o da realidade e o das fake news. Chegará o momento em que não conseguiremos distinguir os dois. Um é feito por humanos, outro por robôs. É um momento singular da história e do jornalismo. A notícia grande afasta o leitor, as pessoas estão acostumadas a ler o Twitter, emails. Mas, nesse momento, eu já saí desse jornalismo. O meu jornalismo hoje se resume à minha crônica [no jornal O Estado de S. Paulo]. É onde solto todas as minhas raivas, as minhas indignações, os meus protestos e gritos. A literatura serve para denunciar, não, detesto essa palavra denunciar; serve para mostrar o que está acontecendo...

RFI: Aqui na França existe um gênero literário dedicado à literatura de viagem. Você diria que algumas obras suas cobrem esse universo? 

Ignácio de Loyola Brandão: Não diria que faço literatura de viagem, mas tenho três livros de viagem. O primeiro é O Verde Violentou o Muro e é praticamente um diário dos dois anos que vivi na Alemanha, em Berlim. Tudo o que me espantava dentro daquela cidade cercada pelo muro, eu colocava dentro do livro.

Depois, teve um livro que escrevi quando fui a Cuba em 1978, onde fiquei 40 dias, com um grupo de escritores brasileiros, e vi como se vivia naquele país socialista. Não havia realmente uma criança analfabeta. Todas as pessoas ganhavam o suficiente para comer e viver, apesar dos erros e distorções. Lia-se muito em Cuba e todos tinham direito e acesso à medicina. Aquilo me impressionou muito. Esse é o livro que chamei Cuba de Fidel: Viagem à Ilha Proibida. O livro foi censurado no Brasil assim que foi publicado.

E tenho um terceiro livro de viagens, que eu adoro, que se chama O Mel de Ocara. Ocara é uma pequena cidade do interior do Ceará, onde fui fazer uma palestra num sábado de manhã. Uma cidadezinha de 20 mil habitantes que nunca tinha visto um escritor na vida. Pessoas simples, rudes, muito pouco alfabetizadas, e tinha 200 pessoas para a palestra no Centro Comunitário. Cheguei e disse: tudo o que sei fazer é contar história. Eles prestando atenção, eu fico olhando o público... Fui conversando, contando o processo de criação, como eu fiz isso ou aquilo... Fiquei admirado e espantado quando terminou. Porque eu vou falar na USP, tem três perguntas... Porque eles sabem tudo... Mas, ali, eu respondi uma hora e meia de perguntas! Aquela gente simples queria saber tudo, coisas incríveis. No final dessa conversa, vieram duas senhoras de 85, 84 anos, negras, muito humildes, disseram que eram analfabetas, mas que haviam gostado muito das histórias e que queriam aprender a ler. Anos mais tarde voltei ao Ceará, mas na capital, Fortaleza, e me levaram a um programa de televisão. Num determinado momento do programa, o apresentador me chamou e disse: você conhece essas duas mulheres? Eu lembrava até o nome delas... Ela disseram que já sabiam ler e que estavam lendo o livro... Nesse momento eu senti que vale a pena fazer essas coisas...

RFI: Você se tornou um imortal quando tomou posse na Academia Brasileira de Letras ocupando a cadeira número 11 em outubro de 2019. O Guimarães Rosa morria de medo de vestir o fardão, por superstição. E você? Como é fazer parte da Academia? Como você pensa sua obra hoje?

Ignácio de Loyola Brandão: Eu não penso a minha obra... Eu faço a minha obra... E por que vou ficar pensando na minha obra? Faço as coisas que pretendo de acordo com a minha cabeça, com a minha mentalidade, com a minha ideologia - essa palavra horrorosa. Se eu for ficar pensando na imortalidade ilusória, isso é uma bobagem... A Academia é um passo a mais. Eu nunca pensei em ir na Academia, até o dia que fui. Por sorte fui eleito por unanimidade. A Academia te dá um certo status, abre algumas portas... Mas será que eu ainda preciso dessas portas? Mas a Academia é gostosa, ela acaricia a gente... Talvez eu tenha aceitado pelo meu pai, que já morreu e que adorava ler, era um funcionário público que comprava livros com esforço. Ou pelas minhas professoras... 

RFI: Você escreveu boa parte da sua obra durante um Brasil que se construía enquanto potência de futuro. Como é viver agora em um país que parece estar em crise consigo mesmo e com o mundo?

Ignácio de Loyola Brandão: (risos) É uma sensação das mais insólitas... Conseguiu se eleger o pior presidente que o Brasil teve em sua República. É um homem tosco, ignorante, analfabeto, insensível a tudo. Diz uma coisa hoje, outra amanhã. Já estamos acostumados com o falar e negar. Um homem que nega --e ele é famoso pelo negacionismo-- a Covid, que está aí, matando. Até agora não se decidiu nada de vacina. Encheu o governo de militares, não se preocupa com nada. Dois, três filhos que são realmente ladrões e bandidos. É uma coisa maluca, é irreal o que estamos vivendo... Ele que ia combater a corrupção, é um corrupto, está comprando os deputados. Não sabemos o que fazer, não tem como pedir um impeachment dele com essa Câmara de parlamentares vendidos. Mas as eleições municipais nos mostraram agora que nem tudo é tão ruim como se pensa. Acho que tem uma saída...

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