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Há uma tentativa de silenciamento da história negra, diz pesquisador de memória afro-brasileira

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O novembro negro, mês de celebração da história e cultura afro-brasileira, é uma conquista dos movimentos sociais. "O direito à memória é fundamental na luta antirracista, assim como o direito à vida", sublinha o sociólogo Mario Medeiros. No entanto, o professor da Unicamp denuncia, em entrevista à RFI, a "tentativa de silencionamento da história negra" com a retirada do apoio federal às celebrações de 20 de novembro neste ano.

Sociólogo Mário Medeiros, professor da Unicamp e pesquisador de movimentos negros
Sociólogo Mário Medeiros, professor da Unicamp e pesquisador de movimentos negros © Arquivo Pessoal
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Símbolos não se forjam por acaso. Até os anos 1970, pouco se falava sobre o quilombo de Palmares, em Alagoas, e seu líder Zumbi na história do fim da escravidão no Brasil. A grande data cívica era o 13 de maio e, nos livros escolares, a princesa Isabel era a "libertadora dos escravos", lembra o professor Henrique Cunha Júnior, em artigo de 2003.

Foi nesse período que movimentos negros passaram a celebrar o 20 de novembro de 1695, dia de morte de Zumbi, como forma de evidenciar a luta pela conquista da liberdade em lugar de uma narrativa que não tinha negros no papel de atores. "A data tem uma remissão direta ao sentido da celebração da memória, da importância da memória e da disputa da memória", destaca o sociólogo Mário Medeiros, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) em entrevista à RFI.

A disputa pela memória recentemente passou a ser travada em lugares inesperados. Neste ano, o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, decidiu que a instituição criada em 1988 para promover a história negra não iria apoiar financeiramente a celebração do dia nacional de Zumbi e da Consciência Negra, instituído em 2011.

"A fundação tem a missão de preservar e divulgar a memória afro-brasileira e as populações quilombolas, de maneira geral. Quando se afirma que não haverá apoio das celebrações do dia da Consciência Negra, há sim uma tentativa de silenciamento sobre um debate público que é uma conquista histórica de décadas", avalia Medeiros. "Esse silenciamento acaba se tornando portanto uma ação direta do estado contra a memória afro-brasileira, contra a memória negra-brasileira, contra o direito das pessoas de conhecerem referências importantes da participação negra na história brasileira", completa.

Para o pesquisador, o governo de Jair Bolsonaro tenta uma espécie de sequestro de pauta da agenda de mobilização negra no Brasil. "Há uma tentativa de afirmar que não há razão para se discutir racismo, discriminação ou preconceito em nosso país, apesar dos dados oficiais de violência, por exemplo. Há uma tentativa de reescrever a história, mostrando por exemplo que em alguns casos a escravidão teria sido benéfica, a ação da colonização teria sido benéfica para a população negra, uma tentativa de questionar heróis que têm importante papel na memória afro-brasileira", analisa.

O movimento, segundo o sociólogo, faz parte de uma "guerra cultural" travada pelo governo e inserida em um debate público transnacional, que ganhou amplitude com a ascensão de partidos e políticos conservadores em diferentes países do mundo, como nos Estados Unidos, na Hungria, na Itália e na Polônia. Esta agenda pretende adotar uma pauta de valores em que a regra é o homem branco, nacional, heterossexual e cristão, e toda a agenda diferente disso é desviante e deve ser abolida.

Com racismo, não há democracia

Diante da tentativa de silenciamento de pautas das minorias, a reação vem, mais uma vez, pelos movimentos sociais. O professor da Unicamp salienta que após o assassinato de George Floyd por policiais nos Estados Unidos, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) deflagrou protestos por todo o mundo não apenas pelo direito à vida.

"O tema da memória coletiva explodiu em diversos países com o debate sobre a retirada de monumentos e homenagens escravagistas e colonialistas. O direito à memória é também um direito fundamental na luta antirracista hoje, assim como o direito a vida e o acesso aos direitos sociais."

A campanha lançada pela Coalizão Negra por Direitos em junho deste ano, sob o lema "enquanto houver racismo, não haverá democracia", é vista pelo sociólogo como uma forma interessante de pautar o debate sobre o racismo estrutural e suas consequências.

"É um dos movimentos negros que questiona essa narrativa e pressiona o Estado a se pronunciar a respeito da existência do racismo e de suas consequências", comenta. "A Coalizão Negra por Direitos congrega uma série de movimentos negros, reivindicando uma pauta que pode ser bastante interessante não só do ponto de vista das eleições mas também para fazer que a sociedade pense. O lema denuncia essa realidade violenta que é reconhecida pelos organismos oficiais, como o mapa da violência do Ipea, o censo com relação à composição étnica do Brasil e a posição em que as pessoas se encontram na sociedade em função da cor da pele."

A mobilização atual é mais um marco na longa de trajetória de luta e de associativismo negro no Brasil. Com associações e clubes que servem para construir apoio mútuo e lutar por direitos da comunidade negra que remontam a 1874, com a Sociedade Floresta Aurora em Porto Alegre, ou a 1897, com a Sociedade Beneficiente e Recreativa 28 de setembro, em São Paulo, passando pela Frente Negra Brasileira e pelo Movimento Negro Unificado (MNU).

Uma história ainda pouco conhecida, nas palavras do pesquisador, "embora faça parte da nossa experiência como povo".

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