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Reportagem

Lulla e Piero Gancia: conheça o casal pioneiro do automobilismo no Brasil

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A história do automobilismo no Brasil não seria a mesma se não fosse a dedicação de um casal de italianos apaixonados por automóveis. O livro “Lulla e Piero Gancia – No Grande Prêmio da vida”, escrito por Carlo Gancia, conta a vida dos imigrantes que, além de reunirem diversas vitórias na década de 1960, foram responsáveis por duas reformas da pista de Interlagos e pela volta do campeonato mundial à cidade de São Paulo. 

Lulla Gancia uma das pioneiras do automobilismo feminino no Brasil.
Lulla Gancia uma das pioneiras do automobilismo feminino no Brasil. © Captura de tela
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Gina Marques, correspondente da RFI

Em janeiro de 1962 Lulla Gancia estava na Itália para o funeral do pai dela. Quando soube que seu marido Piero decidiu pilotar a Alfa Romeo Giulietta em uma corrida na pista de Interlagos exclamou: “Você está louco! Temos três filhos, seu desgraçado!”, conta o empresário Carlo Gancia, filho do casal.

No ano seguinte era Lulla que corria na pista com um grupo de seis mulheres pioneiras do automobilismo do Brasil. Ela chegaria ainda a competir nos Mil Quilômetros de Brasília em 1966 e na Rodovia do Café, no Paraná, onde seu carro capotou.

Piero Vallarino Gancia passou para a história como o primeiro campeão brasileiro de automobilismo em 1966, quando o torneio foi instituído no Brasil. Eram três provas: 1.000 km de Brasília, 500 km de Interlagos e 1.000 km da Guanabara.

Lulla não suportava ser chamada pelo nome de batismo, Amalia. Por coincidência, era o mesmo nome da sogra dela, mãe de Piero. “Ela preferia o apelido que tinha desde criança e fazia questão de soletrar: Ele-U-Dois Eles-A”, lembra a jornalista Barbara Gancia, durante entrevista dada em São Paulo.

Neta do conde Giacomo Salvadori di Wiesenhoff, uma nobre família originaria do Tirol austríaco, que hoje faz parte da região italiana Trentino-Alto Adige, Lulla nasceu em Turim em 5 de fevereiro de 1924.

Piero Vallerino Gancia também nasceu em Turim, dois anos antes de Lulla. O bisavó dele, Carlo Gancia, em 1850 com o irmão Edoardo, fundou a vinícola Fratelli Gancia, que produzia bebidas como vinhos espumantes, além de Vermouth. Mais tarde, o espumante Asti ficou mundialmente conhecido.

Na década de 1930, a Gancia abriu uma fábrica na Argentina, que se destacava por sua economia forte e uma enorme população de imigrantes italianos. Naquela época a renda per capita argentina era superior à dos Estados Unidos e ali pareciam estar as reais oportunidades.

Ao longo da história a Gancia passou por períodos difíceis durante a Segunda Guerra Mundial.

“Na Itália, administrada por meu avô Carlo e seu irmão Lamberto, a Gancia não produziu uma só garrafa durante cinco anos da Segunda Guerra Mundial. Faltavam insumos como garrafas, rótulos, rolhas e a própria produção de vinho não se dava em quantidade suficiente. Mesmo assim a empresa garantiu o salário de cerca de 600 empregados durante todo esse período”, diz Carlo, acrescentando que em abril de 1945 a situação financeira da empresa italiana era muito precária.

“Em 1946, meu avô tomou a decisão de se mudar para a Argentina que continuava uma economia privilegiada por não ter participado do conflito Mundial. Assim a empresa na Argentina teve que financiar a recapitalização italiana. Foi então que meu avô Carlo se mudou para Argentina com a esposa e cinco filhos, todos menos meu pai Piero” recorda Carlo.

Casamento e filhos

Lulla e Piero Gancia se conheceram ainda crianças, quando as famílias passavam as férias de verão na costa da Ligúria, no noroeste na Itália. Eles se casaram em 1947.

A cerimônia foi um dos grandes eventos da capital piemontesa naquele ano. Em seguida, o casal foi morar no Castelo Gancia em Canelli, na região de Asti. No castelo em 1950, eles tiveram o primeiro filho, Carlo. Quando ele tinha quase 1 ano, partiram de navio para Montevidéu.

“A Guerra da Coreia estava começando, e o receio de uma terceira guerra mundial os levou a deixar a Itália”, revela Carlo.

No Uruguai, nasceu a primeira filha, Eleonora, a Kika (hoje Rivetti).

“O primeiro passeio que fizemos foi a Buenos Aires de navio para visitar os pais e os irmãos do meu pai. Na volta, e nas viagens seguintes, o percurso foi feito a bordo de um hidroavião, um Sunderland fabricado na Inglaterra que decolava de Montevidéu e ia até a capital argentina” recorda Carlo. 

Em 1953 o casal decidiu mudar para o Brasil. “Eles decidiram viver em São Paulo, que nos anos 50 deveria ser um paraíso”  comenta o autor do livro.   

Em 1957 nasceu a caçula, Barbara Gancia.

“Imagine que a minha mãe, acompanhada pelo irmão do meu pai, decidiu vir dirigindo o carro de Montevidéu a São Paulo, enquanto meu pai nos trouxe de avião. Normalmente seria o contrário, a mãe com as crianças e o pai dirigindo”, nota Barbara.

Enquanto Carlo ressalta: “Na época a maioria das estradas do Uruguai até São Paulo era de terra. Eles demoraram seis dias para chegar na capital paulista e encontraram a pista asfaltada só em poucos trechos. As fotos desta viagem são memoráveis e estão todas no livro”. 

As 196 páginas do livro (35 altura x 25,5 largura) são permeadas por fotos antigas intercaladas pelo texto de Carlo Gancia que conta a história da sua família.  

Casa em São Paulo

O casal Gancia conquistou a sociedade local. A casa deles na avenida República do Líbano (antiga avenida Ibirapuera) se tornou o ponto de referência que unia requinte à diversão.

“Nossa casa estava sempre repleta de gente, boa conversa e jantares memoráveis” conta Barbara.

“A gente viveu no meio muito fluido, que onde tudo podia acontecer. Desde da alta sociedade até uma certa boemia e muitos amigos jornalistas. A nossa casa era frequentada por todos. Sempre foi muito legal”, lembra Carlo.

A residência era elegantemente decorada com móveis vindos de diversos países, sendo que muitas mobílias e pinturas eram de designers e artistas brasileiros.

Quando Gianni Agnelli visitou o Brasil em 1955, foi na casa dos Gancia que ele se hospedou. Na época, aquele que viria a ser o presidente da Fiat anos mais tarde, era conhecido como um “bon vivant”.

O príncipe Vittorio Emmanuele di Savoia também visitou o casal Gancia em São Paulo.“Na época aquele príncipe maluco ainda não tinha cometido o assassinato no barco”, frisa Barbara referindo-se à morte do jovem alemão Dirk Geerd Hamer em 1978.

Paixão pelo ronco dos motores

Piero Gancia sempre gostou de praticar esportes, mas começou o automobilismo no Brasil por uma coincidência, por assim dizer, de sorte.

“Tudo nasce de um caso fortuito. Kika e eu estávamos a caminho do dentista com o motorista de casa, Felice Albertini, dirigindo uma Alfa Romeo Giulietta TI, o xodó que meu pai havia comprado uns meses antes. Em uma valeta da Rua Bela Cintra, o carro bateu nos paralelepípedos que na época pavimentavam a rua e o cárter de óleo rachou no meio. Meu pai ficou literalmente de pé. Sem saber onde levar o carro para consertar recorreu a dois amigos. Foram os dois Lucianos, o Falzoni e o della Porta, que recomendaram a oficina Tubularte na Rua José Monteiro, no Brás”, conta Carlo, no livro.

Nesta oficina Tubularte havia um mecânico italiano que conhecia bem o carro Alfa Romeo.

“Lá na oficina estava Giuseppe Perego, grande mecânico e uma figura humana maravilhosa. Talvez uma das pessoas mais memoráveis que conheci em toda minha vida”, acrescenta.

Segundo Carlo, o milanês Giuseppe Perego era um perfeccionista nato. “Bastava vê-lo segurar as ferramentas. Tinha uma percepção extrassensorial pela mecânica, ouvia, sentia vibrações. Um vulcão em ação”, afirma o autor do livro.

O mecânico Perego - que havia trabalhado na Isotta Fraschini, na Maserati e com o argentino Juan Manuel Fangio, pentacampeão mundial de F1- sugeriu que Piero colocasse o carro na pista, e foi o começo da história.

Piero Gancia estreou nas pistas em 25 de janeiro de 1962, nas 12 Horas de Interlagos, formando dupla com seu amigo Celso Lara Barberis, também de origem piemontesa. Ficaram em 5º lugar pilotando uma Alfa Giulietta.

Piero ganhou sua primeira corrida nas ruas da Barra da Tijuca, no Rio, em 1965. Ele também formou uma equipe vencedora, a Escuderia Jolly-Gancia. No ano seguinte, consagrou-se o primeiro campeão brasileiro de automobilismo.

Com a Alfa GTA, em 1970, Piero venceu o Campeonato Sul-Americano de Carros Turismo batendo a acirrada concorrência de brasileiros, argentinos e uruguaios. Foi nessa época que ele também presidiu a Associação Paulista dos Volantes de Competição (APVC).

“Foram os pilotos que pediram para ele assumir a presidência desta Associação. Como piloto, ele sabia ouvir atentamente as reivindicações dos colegas e entendia exatamente quais eram as principais e mais urgentes necessidades da categoria. Piero Gancia sempre priorizou o esporte e não a política”, conta Carlo.

No entanto, o circuito paulistano estava em péssimo estado. “A pista de Interlagos era toda esburacada, havia burros pastando no local, muito deplorável”, explica Barbara.

No final da década de 1960, o casal Gancia convenceu o então prefeito de São Paulo, José Vicente Faria Lima, a autorizar a reforma. Lulla meticulosamente cuidou dos detalhes do projeto.

O esforço do casal Gancia junto a Faria Lima abriu as portas para a projeção internacional de seus pilotos. Com a nova pista de Interlagos, mais o seu kartódromo, o sonho virou realidade com torneios internacionais de Fórmula Ford, Fórmula 3, Fórmula 2 e, em 1972, a categoria máxima, a Fórmula 1.

“Lulla pagou a própria viagem até Monza para aprender como se faz uma pista de qualidade. Escalou os engenheiros, adequou o asfalto, reformou os boxes, construiu o gradil de proteção. Foi essa reforma que abriu espaço para que o Brasil acolhesse em 1972, sua primeira corrida de Fórmula 1, entrando no ano seguinte para o circuito mundial”, lembra Carlo.

O redesenho do kartódromo de SP foi outro esforço pessoal de Lulla. Ela fez da pista a escola de ídolos como Ayrton Senna e Rubens Barrichello.  

Nessa época, Piero abriu uma concessionária de automóveis e começou a importar Alfa Romeo, Ferrari e Lamborghini para o Brasil.

Nova reforma de Interlagos

Em 1981, o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 passou a ser realizado no Rio de Janeiro em Jacarepaguá, onde ficou até 1989.

Barbara e Carlo lembram que uma pessoa do Rio de Janeiro ligada ao autódromo de Jacarepaguá pediu uma propina para organizar o G.P. “Esta cartolagem irritou muito o Bernie Ecclestone e o Brasil quase perdeu a possibilidade de hospedar um G.P. Neste momento Piero, que era presidente da Confederação Brasileira de Automobilismo, se convenceu que o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 deveria voltar a São Paulo” recorda Barbara.

Na época a prefeita de São Paulo, Luíza Erundina do PT já havia comunicado a sua intenção de construir um Conjunto Habitacional na área de Interlagos. 

“Meu pai não desistiu. Ele se encontrou com Erundina e conseguiu convencê-la da importância de trazer o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 a São Paulo”, ressalta Carlo.  

Em dezembro de 1989 deu-se início a uma grande reforma no autódromo, quando foram construídos 23 novos boxes, sala de imprensa, torre de cronometragem, centro médico e a pista foi reduzida para 4.325 m.

No ano seguinte o Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1 voltou a São Paulo onde continua até hoje. Graças a Lulla e Piero Gancia o Brasil e São Paulo fazem parte do calendário da F1.

“Jackie Stewart, tricampeão mundial de Fórmula 1, sempre falava: “Eu não sei o que os brasileiros têm, deve ser água que eles bebem”. As pessoas se perguntam por que o Brasil se deu tão bem na Fórmula 1, por que tem três brasileiros campeões mundiais. Nenhum outro país tem três campeões mundiais. Nós temos o Emerson Fittipaldi, Nelson Piquet e Ayrton Senna. Muito se deve à grande história que há por trás”, sinaliza Barbara.

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