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Linha Direta

África do Sul realiza exercícios militares com a Rússia e a China em meio à guerra na Ucrânia

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Enquanto o mundo discute o conflito na Ucrânia, que completou um ano em 24 de fevereiro, militares da África do Sul realizam, na costa do país, um treinamento com tropas russas e chinesas. Os três países estão exibindo parte dos seus armamentos marítimos entre as cidades de Richards Bay e Durban.

Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, durante coletiva em Adis Abeba, Etiópia.
Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, durante coletiva em Adis Abeba, Etiópia. © Vinícius Assis
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Vinícius Assis, correspondente da RFI em Adis Abeba, Etiópia

Os exercícios militares, que acontecem pela segunda vez na quarta-feira (21), causaram indignação em parte da população e geraram protestos da Associação Ucraniana da África do Sul (UAZA, sigla em inglês), que classificou como lamentável a decisão do governo sul-africano de convidar a Rússia para participar de seu exercício naval chamado MOSI II, “no momento em que a Rússia está envolvida na invasão do estado soberano da Ucrânia".

Segundo a imprensa local, Katya Fedkina, porta-voz da UAZA na região costeira de KwaZulu-Natal, disse que isso representa que "a posição neutra da África do Sul sobre a guerra na Ucrânia está chegando ao fim".

Protestos aconteceram, na sexta-feira (25), na Cidade do Cabo e em Durban. "Milhões de ucranianos se tornaram refugiados e milhares de mulheres e crianças foram estupradas como resultado da guerra do Putin. É isso que a África do Sul quer imitar?”, questionou a porta-voz da UAZA.

A Força de Defesa Nacional da África do Sul (SANDF, sigla em inglês) informou na quarta-feira que o exercício naval fortalecerá as relações entre os três países. A primeira edição do treinamento MOSI aconteceu em 2019, na Cidade do Cabo.

A Rússia tem uma longa e estreita relação com a África do Sul, especialmente com o Congresso Nacional Africano, partido que está no poder desde 1994, quando Nelson Mandela foi eleito o primeiro presidente negro do país. Isso se deve ao apoio russo à luta contra o regime de segregação do apartheid.

Divisão diplomática e inflação no continente africano

Em março de 2022, a África do Sul foi um dos 35 países – entre eles, 17 africanos – que se abstiveram na votação da resolução da ONU contra a Rússia. Mas 141 votaram a favor – 28 deles africanos – e 5 contra, incluindo a Eritreia. Representantes de oito países estavam ausentes. O continente africano teve influência significativa no resultado da votação, com seus 54 países representando quase 30% de todos os votos.

De lá para cá, países como França tentaram influenciar o posicionamento de governos africanos no conflito que atingiu em cheio a economia do segundo continente mais populoso do planeta. Os preços dos alimentos e dos combustíveis dispararam desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, já que a guerra interrompeu cadeias de abastecimento globais e causou escassez de alimentos sem precedentes em muitas áreas.

O continente africano depende fortemente das importações de grãos e petróleo da Ucrânia e da Rússia. Em visitas ao continente africano, o presidente francês Emmanuel Macron insistiu no discurso de que os russos estavam usando a fome como arma de guerra. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, tenta rebater esta narrativa nas visitas que passou a fazer nos últimos meses a países como Etiópia, África do Sul e, mais recentemente, Sudão.

A ONU estima que famílias africanas gastem em média 40% da renda com alimentos. Um dos países que estão vendo o impacto do conflito na mesa da população é o Quênia, que importou 30% de seu trigo da Rússia e da Ucrânia em 2021, segundo o Instituto de Paz dos Estados Unidos. Quenianos experimentam níveis sem precedentes de inflação e escassez de alimentos, porque o país do leste africano, uma das maiores economias do continente, não está conseguindo importar tudo o que precisa nem produzir na quantidade necessária itens essenciais, como pão.

De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento, países africanos gastam mais de US$ 75 bilhões para importar mais de 100 milhões de toneladas de cereais anualmente. Em 2020, 15 países africanos importaram mais de 50% de seu trigo da Rússia ou da Ucrânia. O conflito entre esses dois países provocou uma escassez de cerca de 30 milhões de toneladas de grãos no continente.

Solidariedade seletiva

Com a atenção de boa parte do mundo voltada para a assistência aos ucranianos, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, sigla em inglês) arrecadou ao longo do ano passado 80% dos US$4,3 bilhões necessários para assistir às vítimas dos ataques russos. Estima-se que a guerra na Ucrânia já deixou mais de 40 mil mortos, aproximadamente 57 mil feridos, 15 mil desaparecidos e 14 milhões de desalojados, além de pelo menos 140 mil edifícios destruídos na Ucrânia.

Enquanto isso, para socorrer os afetados pela guerra civil na Etiópia, a OCHA obteve somente 50,8% dos US$ 3,3 bilhões necessários no ano passado. E este foi um conflito que começou bem antes, em novembro de 2020. Estima-se que tenha causado a morte de cerca de 500 mil pessoas em dois anos.

Há ainda em andamento 14 crises humanitárias para as quais o escritório da ONU depende de doações no continente africano. Para nove delas, as arrecadações não atingiram 50% em 2022. Os dados são frequentemente atualizados e estão disponíveis na internet.

A Etiópia é o terceiro país africano com mais refugiados e pessoas em busca de asilo: quase 883 mil, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). O Alto Comissariado da pasta Filippo Grandi esteve no país no início deste mês. Depois de ter visitado a região do Tigré, no norte – que viu o conflito de dois anos acabar depois da assinatura de um acordo de paz em novembro do ano passado – ele lembrou da guerra que esta semana completa um ano.

Grandi falou sobre o conflito durante uma coletiva em Adis Abeba da qual a RFI participou. “Alguns dias atrás eu estive na Ucrânia. Claro, as necessidades humanitárias do povo ucraniano após a invasão russa são enormes, mas isso não significa que em outras partes do mundo a necessidade do povo deva ser negligenciada”, disse, convidando a comunidade internacional a prestar mais atenção a crises humanitárias também no continente africano. “No ano passado, o programa do ACNUR na Etiópia foi financiado apenas pela metade”, destacou Grandi.

Um ano de perdas e ganhos

Por uma série de fatores, entre eles a guerra na Ucrânia, estima-se que o crescimento econômico da África será de 3,8% em 2023, menor que os 4,1% em 2022, segundo a ONU. Moedas africanas, mais fracas em relação ao dólar, aumentaram as pressões inflacionárias.

Para combater a inflação e a pressão cambial, cerca de dois terços dos países do continente aumentam as taxas de juros no ano passado e mais países da região devem fazer o mesmo em 2023. O endividamento público tem sido uma das grandes preocupações por aqui. Sete países africanos começaram este ano em situação de superendividamento e outros 14 correm um grande risco de chegar ao mesmo nível.

Com o fornecimento de gás russo ameaçando, a Europa teve que olhar para países como Egito, por exemplo, na hora de pensar em um fornecedor substituto.

A Nigéria, maior economia africana, tomou o lugar da Rússia no fornecimento de ureia para o Brasil. O volume importado do produto nigeriano por empresas brasileiras em agosto do ano passado já tinha sido 50% maior que o de todo ano anterior.

Como parte do “pacote de Natal” do presidente dos Estados Unidos em dezembro, divulgado durante a Cúpula Estados Unidos-África, Joe Biden anunciou que os EUA fornecerão US$ 2,5 bilhões adicionais especificamente para fortalecer a produção de alimentos na África, além dos US$ 11 bilhões já fornecidos em 2022.

Fontes da União Africana repetiram à reportagem que líderes africanos que não tomaram partido na guerra da Ucrânia não erraram, pois o continente tem muitos desafios internos a serem enfrentados. “E, para isso, precisa focar em ser cada vez menos dependente de grandes potências e agências da ONU”, disse um dos diplomatas africanos, que prefere se manter em anonimato.

Países como a África do Sul, que declarou recentemente estado de desastre nacional por causa da crise energética que atravessa, se esforçam para se manter dentro das mudanças nas políticas energéticas internacionais. E sobre combater a insegurança alimentar que só aumenta, especialistas afirmam que, pensando na temporada de cultivo de 2023-2024, o preço e a disponibilidade de fertilizantes para os agricultores na África determinarão como o continente enfrentará este desafio.

A cúpula da União Africana de 2023 aconteceu na semana passada reforçando a necessidade de se acelerar a implementação da Área de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA, sigla em inglês), mas sem deixar de colocar em pauta desafios como golpes militares que ainda preocupam (inclusive pela aparente influência russa em alguns casos).

A implementação da AfCFTA poderia garantir um comércio transfronteiriço mais eficiente, segundo os mais otimistas. Com isso seria, possível movimentar aproximadamente 30 milhões de toneladas de fertilizantes que a África produz a cada ano. Isso significa o dobro da quantidade de fertilizante que o continente consome atualmente. E o Banco Africano de Desenvolvimento planeja investir US$ 10 bilhões para tornar a África o celeiro do mundo.

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