Acessar o conteúdo principal
Linha Direta

Crise energética na África do Sul afeta empresários brasileiros no país

Publicado em:

A crise energética que assola a África do Sul há mais de 10 anos tem, literalmente, tirado o sono de gente como o gaúcho Douglas Fernandes, que tem apneia, um distúrbio que pode fazê-lo parar de respirar enquanto dorme.

Membros da oposição Aliança Democrática (DA) marcham até a Casa Luthuli do Congresso Nacional Africano (ANC), partido no poder, sobre cortes de energia, em Joanesburgo, África do Sul, quarta-feira, 25 de janeiro de 2023.
Membros da oposição Aliança Democrática (DA) marcham até a Casa Luthuli do Congresso Nacional Africano (ANC), partido no poder, sobre cortes de energia, em Joanesburgo, África do Sul, quarta-feira, 25 de janeiro de 2023. AP
Publicidade

Vinícius Assis, correspondente da RFI em Adis Abeba, na Etiópia

Para evitar que isso aconteça, ele, que vive com a esposa em Pretória, precisa dormir com uma máquina movida a eletricidade. “Com essa agenda de desligamentos de energia programados, toda a noite que tem isso é um pesadelo”, disse. Temendo o risco de ficar sem energia durante a madrugada, o casal gastou o equivalente a cerca de R$3.500 para comprar uma bateria especial que garante eletricidade na casa por algumas horas. O problema é quando o brasileiro precisa viajar, principalmente para o interior da África do Sul. “Se eu vou dormir fora de casa é 90% de certeza que eu vou dormir mal”, contou. Isso certamente prejudica o desempenho dele no trabalho no dia seguinte.

Douglas é representante comercial de uma empresa brasileira de implementos agrícolas. Pensando em questões logísticas, a decisão foi instalar na África do Sul a sua base no continente, mas os constantes cortes de energia também o estão prejudicando profissionalmente.

“Sempre ao planejar qualquer tipo de reunião tem que pensar no horário do desligamento programado. Por mais que eu tenha bateria em casa, que segura o sinal do wi-fi, muitas vezes o provedor do serviço (de internet) não tem como suportar essas várias horas sem energia durante o dia. A gente acaba ficando sem sinal, sem conexão. Isso atrapalha muito”, relatou.

Contrariando o imaginário de muitos brasileiros que associam esta parte do planeta apenas à pobreza e vida selvagem, cidades sul-africanas como Joanesburgo, Durban e Cidade do Cabo podem, sim, ser consideradas modernas e bem estruturadas. Mas viver no país tido como o mais industrializado do continente africano atualmente é acordar certo de que provavelmente não contará com energia elétrica ao longo de todo o dia, mesmo nos maiores centros urbanos sul-africanos.

Loadshedding virou rotina

Quem pretende viajar para a África do Sul em breve deve começar a se familiarizar com a expressão loadshedding (que, em tradução livre, significa redução de carga). Este é o nome do programa nacional de interrupção do fornecimento de energia criado para diminuir a demanda por eletricidade no país. Isso é feito através de um revezamento. A distribuidora nacional de energia, Eskom, disponibilizou um aplicativo para celulares com o qual é possível saber, pelo menos em teoria, o período em que um bairro ficará sem energia elétrica. Quando a energia volta em determinada área, outra região fica sem o serviço. Quando isso acontece à noite, o medo é que a escuridão nas ruas facilite a ação de criminosos.

Quando a reportagem entrou em contato com a brasileira Marília Terezinha Martone Bernstein, que vive em Joanesburgo, ela respondeu pedindo que a entrevista fosse mais tarde, porque o bairro onde ela mora estava sem energia pela segunda vez no mesmo dia. Ao todo, foram quatro horas sem eletricidade. Vivendo no país desde 2004, ela - que é advogada no Brasil, mas trabalha como consultora na África do Sul - diz que precisa muito do computador no dia a dia. “Você fica na dependência de enviar e receber e-mails, documentos importantes, decisões importantes e tudo tem que ser praticamente adiado”, relatou.

A brasileira lembrou que esta crise se agravou nos últimos anos. “Antigamente não tinha este problema. Isso começou com o Zuma”, disse, se referindo ao ex-presidente Jacob Zuma, que governou a África do Sul entre 2009 e 2018, quando se viu forçado a renunciar. Zuma foi acusado de se envolver em um gigantesco escândalo de corrupção junto com uma família indiana, os Gupta. O esquema também envolveu a distribuidora de energia na África do Sul. “Eles praticamente tomaram conta de empresas públicas, como a Eskom, e roubaram o dinheiro”, acrescentou o advogado sul-africano Emile Myburgh.

A corrupção está entre as respostas quando a pergunta é como uma das maiores economias africanas chegou a este ponto. Fala-se, também, em atrasos na construção de novas usinas, má gestão, sabotagem e a burocracia que impediu a disponibilização de energia renovável por fornecedores privados rapidamente. Cerca de 80% da energia da África do Sul ainda vêm do carvão. Com isso, para muita gente, ter luxuosos carros elétricos circulando pelas largas avenidas da Cidade do Cabo ou entre os gigantescos prédios de Joanesburgo, no momento, é como enxugar gelo.

Estado de desastre nacional (de novo)

A situação levou o governo da África do Sul a decretar, nos últimos dias, estado de desastre nacional. A medida, amparada em uma lei de 2002, dá ao governo poderes adicionais para responder a uma crise, inclusive agilizando a aquisição de itens considerados de emergência com menos atrasos, burocracia e supervisão. “Estamos nas garras de uma profunda crise energética”, justificou o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa durante o anual discurso no Parlamento, o State of the Nation. O presidente começou o pronunciamento com quase uma hora de atraso depois de uma confusão envolvendo integrantes do partido de oposição Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF, sigla em inglês). Parlamentares deste partido protestaram e chegaram, inclusive, a tentar subir no palco onde Ramaphosa faria seu discurso, mas foram contidos e colocados para fora do local por seguranças, na Cidade do Cabo.

É a terceira vez que a África do Sul decreta estado de desastre desde 2020. Nas duas vezes anteriores, os motivos foram a pandemia de coronavírus, três anos atrás, e os alagamentos na província de KwaZulu-Natal, no ano passado. O advogado sul-africano Emile Myburgh diz que essa lei de 2002 que trata do assunto é controversa. Além de temer novas restrições à liberdade, o medo é que legalmente pessoas do governo encontrem brechas para usar o dinheiro público incorretamente. “A população sul-africana não tem mais muita fé no governo para administrar desastres depois da Covid-19, quando surgiram regras muito estranhas. E ninguém acredita que a implosão da infraestrutura de geração de luz realmente é um desastre, porque foi causado por falta de manutenção do sistema elétrico e muita corrupção”, disse. Para o advogado, algo que começou a ser causado no governo de Jacob Zuma não necessariamente poderia ser considerado um desastre, principalmente comparado ao coronavírus, “que ninguém podia prever e parar”. Além disso, ele se mostra pouco otimista sobre estado de desastre decretado como caminho para se achar uma solução para o problema. “Pessoalmente, acho que não vai ter efeito”, disse.

O partido sul-africano Aliança Democrática (DA, sigla em inglês), maior opositor do governo, disse que contestaria a declaração de estado de desastre judicialmente, alegando que o partido do presidente Ramaphosa (o Congresso Nacional Africano) emitiu regulamentos sem sentido e abusou dos processos de aquisição durante a pandemia.

Reajustes em serviço ineficiente

Marília Martone destaca que declarar estado de desastre nacional é diferente de procurar soluções eficientes. No mês passado a Eskom foi autorizada a reajustar a tarifa de energia em quase 19%. “Aumentar preço por um serviço que não existe é um absurdo”, desabafou a brasileira. Depois da notícia sobre o aumento, o presidente sul-africano pediu o adiamento do reajuste. A brasileira também afirmou que o ponto central precisa ser o combate ao mau uso do dinheiro público. “Se não combater a corrupção, não vai adiantar declarar desastre ou deixar de declarar desastre porque continuamente vai existir isso. Então, ele tem que começar pela raíz. Acredito que uma das possibilidades seria realmente privatizar”, concluiu.

A expectativa é de que os cortes de energia reduzam o crescimento econômico da África do Sul para 0,3% este ano. O advogado Emile Myburgh, que defende as maiores empresas brasileiras no país dele, lembra que muitas estão gastando “milhões” por ano com diesel para manter geradores funcionando e não interromper o trabalho. Douglas Fernandes lembra que o setor agrícola, com o qual trabalha, vem sendo muito prejudicado, porque só agora está voltando a chover nas regiões produtoras de milho, soja e girassol, depois de um período de escassez. Produtores que investiram em sistemas de irrigação não conseguiram usar os equipamentos, porque houve dias com até 10 horas sem energia, o que aumenta o custo de produção e compromete a disponibilidade do que se espera produzir.

Restaurantes fechados

Redes de fast food são muito populares na África do Sul, com unidades inclusive no interior. Alguns restaurantes foram fechados porque aumentar o gasto com geradores para manter freezers funcionando e vender pratos a preços populares ficou insustentável. Os empresários do setor que ainda resistem precisam lidar com a desconfiança da clientela. “Como você chega em um restaurante que não tem gerador e consome o alimento com tranquilidade, sendo que aquele freezer ficou desligado por 10 horas durante o dia ou congelou e descongelou, congelou e descongelou o alimento? É difícil garantir uma qualidade nesse sentido. Isso nos preocupa bastante. Fora o custo para o empreendedor,” explicou o brasileiro.

Douglas ainda lembra que a falta de eletricidade faz com que, em algumas regiões do país, o fornecimento de água também seja comprometido, “porque falta energia para abastecer os reservatórios ou para tratar a água”.

Sobre o estado nacional de desastre declarado pelo presidente sul-africano, o brasileiro enfatiza a importância de uma boa gestão e planejamento. “O que está sendo visto dentro disso nos próximos três, quatro, cinco anos? A fonte de energia vai continuar sendo a mesma? Ou o país vai buscar outras fontes de energia?”, questionou. Ele se mostrou também favorável à ideia se de fazer um trabalho forte em cima das placas solares e viabilizar a instalação desses items em casas, para quem tem condições financeiras para isso. “Hoje é muito difícil. Se você decidir fazer um investimento em um painel solar você é cobrado para usar a placa solar, praticamente. Então, acaba inviabilizando”, destacou. O brasileiro não vê uma solução a curto prazo para o problema na África do Sul. “Eles têm que pensar a longo prazo. Criar um plano e executar. Vamos conviver com este loadshedding por muito tempo, no meu ponto de vista, mas pelo menos tem um panorama em que em um, dois ou três anos, a gente vai ter alternativas de energia”, finalizou.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.