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Reportagem

Eleitores brasileiros na Venezuela, mesmo querendo, não têm onde votar

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Indignação é o sentimento que paira entre os brasileiros residentes na Venezuela. Eles não poderão participar no próximo domingo (02) em uma das eleições mais importantes dos últimos tempos. Desde março de 2020, por uma decisão do Itamaraty, não há representação diplomática do Brasil no país comandado por Nicolás Maduro.

Estar na Venezuela é estar ao lado do Brasil e ao mesmo tempo muito distante. O fechamento das representações diplomáticas do Brasil ampliou ainda mais esta percepção.
Estar na Venezuela é estar ao lado do Brasil e ao mesmo tempo muito distante. O fechamento das representações diplomáticas do Brasil ampliou ainda mais esta percepção. ASSOCIATED PRESS - Eraldo Peres
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Por Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil em Caracas

A rusga política entre o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro com o esquerdista venezuelano afetou cerca de dez mil brasileiros, que agora estão sem acesso a direitos constitucionais, entre eles o do voto. Não fosse pela decisão radical, Bolsonaro poderia voltar a ganhar no país, onde tradicionalmente o eleitorado privilegia candidatos da direita brasileira.

“Eu estou na Venezuela há 45 anos e sempre votei. Essa será a única vez que não teremos oportunidade de votar porque não temos nem consulado, nem embaixada. Eu queria muito votar nessas eleições porque já tenho meu candidato preferido”, declarou a paulistana Amra Zatar. 

A comerciante Imara Santos conta que na eleição de 2018, quando ainda era possível votar nos consulados na Venezuela, apoiou Jair Bolsonaro motivada pela família. Mas a gestão do presidente a decepcionou:

“Votei por ele sim, mas não votaria nunca mais. Ele não gosta da gente, do brasileiro!”

Uma das mágoas da Imara com Jair Bolsonaro surgiu na época do fechamento das representações diplomáticas. Ela afirma que se sentiu "abandonada" pelo governo brasileiro.  

A saída da Venezuela orquestrada pelo Itamaraty aconteceu quando dezenas de países rejeitaram o governo de Maduro em respaldo à figura do opositor autoproclamado presidente interino, Juan Guaidó. Para Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), esta decisão foi outro fator de turbulência do governo Bolsonaro. "Isso criou uma anomalia diplomática que resultou em muitos problemas, dificuldades e que no final das contas trouxe mais obstáculos que soluções para o modo como a Venezuela se relaciona com países vizinhos”.

Outro eleitor de Bolsonaro na Venezuela é o estudante de medicina Lucas Medeiros. Ele votou pelo atual presidente quando ainda morava no Brasil e motivado pela ala evangélica, a principal base eleitoral do ex-militar.

“Quando veio o Bolsonaro, ele teve muita influência nas igrejas evangélicas. Naquele momento, eu participava da igreja evangélica. Teve muita influência nessa parte por causa daquele discurso de “Deus, pátria e família”, e também por causa da decepção que a gente vinha tendo com o Partido dos Trabalhadores (PT)”, argumenta.      

Mas as polêmicas falas de Bolsonaro e a falta de empatia do presidente levaram Lucas a reavaliar seu voto. "Neste momento eu não votaria nele (Bolsonaro) outra vez. Os discursos que ele faz e algumas posturas que ele toma dentro do país ferem a Constituição e principalmente os direitos humanos, principalmente durante a pandemia. Em nenhum momento ele se solidarizou com as pessoas que estavam doentes, com Covid-19”, diz o estudante.   

A reportagem da RFI Brasil também falou com outros eleitores do presidente Jair Bolsonaro na Venezuela. Apesar da queixa comum de querer votar mas não poder, eles preferiram não dar declarações. Uma dessas pessoas, um comerciante que mora no país desde 1970, disse que voltaria a votar no atual chefe de estado brasileiro apesar de ele ter dado as costas aos brasileiros que estão na Venezuela. “Eu gosto dele”, explicou.

Outro brasileiro na Venezuela, favorável a Bolsonaro e que preferiu manter o anonimato, afirmou que era "absolutamente contra a esquerda e tudo o que ela representa”.

“Não seremos a Venezuela”

A frase “não seremos a Venezuela”, repetida pelo presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores, mostra uma rejeição ao país com o qual o Brasil compartilha mais de dois mil quilômetros de fronteira.

Referências e imagens de pontos críticos da Venezuela foram amplamente utilizadas em discursos presidenciais e também em montagens que circulam pelas redes sociais. Algumas engrossam a lista das fake news que circulam pelo Brasil.

“Tenho amigos que dizem 'a gente não quer ser como a Venezuela'. Então pergunto o que eles sabem sobre o país e eles respondem 'o que leem na imprensa'. Eu devolvo dizendo que aqui também falam muito mal do Bolsonaro”, conta Amra.

Ao citar a Venezuela, Bolsonaro e seu eleitorado se referem ao período mais crítico da recente história do país. Entre 2013 e 2019, a forte escassez de alimentos, a queda abrupta do valor da moeda nacional e o alarmante aumento da pobreza assobraram o mundo. Cenas dos violentos protestos de 2017, que deixaram mais de 130 mortos, também fazem parte da memória coletiva. 

Neste período ganhou força o crescente fluxo migratório. São mais de seis milhões de venezuelanos espalhados pelo mundo. De acordo com o Subcomitê Federal para o Recebimento de Imigrantes, até setembro deste ano, havia cerca de 352 mil venezuelanos registrados em todo o Brasil.

“Há um ambiente regional hoje diferente, mais propício ao retorno de um diálogo com a Venezuela, isso é particularmente forte no caso colombiano. Mas não sabemos ainda em que medida essa retomada das negociações vai significar algum tipo de condescendência com o governo Maduro, com as violações de Direitos Humanos na Venezuela, com o autoritarismo do regime Maduro, mas ela abre uma rodada de negociações políticas”, analisa o analista internacional Maurício Santoro, citando a reaproximação entre Colômbia e Venezuela e a atual tendência à esquerda na América do Sul.

Difícil chegar no Brasil

Alguns entrevistados afirmaram ter tido vontade de ir ao Brasil exclusivamente para a votação. Mas entre a falta de tempo hábil para a mudança de domicílio eleitoral e os preços altos das passagens, eles decidiram acompanhar de longe. “Custa muito caro sair da Venezuela para ir votar no Brasil. Mas eu gostaria muito de estar no Brasil neste domingo para votar, mas não foi possível”, diz Neusa Marcelino.

A dívida do governo venezuelano com algumas linhas aéreas e consequências indiretas das sanções aplicadas ao país levaram a Venezuela, antes um dos principais destinos aéreos mundiais, a ficar ainda mais isolada. Há mais de uma década não existem voos diretos para o Brasil. É preciso fazer escala no Panamá ou em outro país e uma passagem de ida e volta pode custar até US$ 1.600 (R$ 8.642). 

Por terra as condições são péssimas, sobretudo no trecho de Las Claritas, no estado Bolívar, quase na fronteira com o Brasil. Além disso no trajeto há máfias que os viajantes.

O fechamento das representações diplomáticas do Brasil ampliou a percepção de distanciamento entre os dois países.            

Um mercado a ser explorado  

A situação da Venezuela começou a mudar em 2019 quando o presidente Nicolás Maduro lançou medidas de flexibilização econômica para acabar com a escassez. Entre os beneficiados estão empresas localizadas no Norte do Brasil, o que tornou comum encontrar nas gôndolas venezuelanas açúcar, macarrão, molhos e misturas para alimentos vindos do Brasil.  

Continua faltando energia elétrica em algumas cidades do país, a crônica falta de água também acomete Caracas, a coleta do lixo é precária e professores protestam contra as insalubres condições de ensino. Apesar dos graves problemas a Venezuela tenta se reerguer. Estimativas apontam para uma surpreendente elevação de 10% do Produto Interno Bruto alavancada pela estabilização da produção petrolífera e o fim da hiperinflação, que por anos foi classificada como a maior do mundo.   

Maduro tem convidado investidores internacionais para modernizar as infraestruturas venezuelanas, mas ainda falta credibilidade, fragilizada durante a "era das privatizações" impostas pelo ex-presidente Hugo Chávez.

A Venezuela é um país que importa pelo menos 80% de tudo o que consome. Quem vem aproveitando o isolamento internacional da Venezuela é o Irã, país que fornece alimentos e gasolina e em breve voltará a produzir veículos. Rússia, China e Turquia também fortaleceram os laços com o governo de Maduro.

Caso haja uma mudança na política externa brasileira, as relações Brasília-Caracas podem ser interessantes para ambos os países. Embora a negociação de alimentos brasileiros mantenha aquecido o comércio bilateral, a balança ainda está longe dos tempos áureos quando bilhões de dólares eram negociados pelos dois países. Entre 2002 e 2010 o comércio entre Brasil e Venezuela cresceu mais de 227%, subindo de U$ 1,43 bilhão, em 2002, para U$ 4,68 bilhões em 2010.

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