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Os 400 anos de Molière vistos do Brasil

A obra de Molière chegou ao Brasil desde a segunda metade do século 18

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Os 400 anos de Molière (1622-1673), dramaturgo cujo nome é sinônimo da língua francesa, são lembrados em todo o mundo, principalmente nos países francófonos. Na França, ele é o segundo autor clássico mais lido, depois de Guy de Maupassant. Em séculos, sua obra já foi traduzida para mais de 100 idiomas, entre eles, claro, o português. A presença e a influência de Molière no Brasil são antigas e constantes.

Quadro de Nicolas André Monsiau, de 1802, representando Molière lendo sua peça "Tartufo" na casa de Ninon de Lenclos. (Image ilustrativa)
Quadro de Nicolas André Monsiau, de 1802, representando Molière lendo sua peça "Tartufo" na casa de Ninon de Lenclos. (Image ilustrativa) © Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
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As peças de teatro do dramaturgo francês começaram a ser lidas e montadas no período colonial, na segunda metade do século 18. Molière chegou ao Brasil pela via de entremezes, nome dado às representações teatrais burlescas ou jocosas de curta duração, que eram encenadas durante a travessia do Atlântico. O registro dessa chegada foi feito pelo primeiro governador de Cuiabá, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cárceres e “As Preciosas Ridículas” teria sido o primeiro texto do dramaturgo francês encenado no país, em 1771.

O professor de teatro da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Walter Lima Torres Neto, explica que os entremezes eram “uma espécie de teatro de cordel, pequenos folhetos que você comprava na porta dos teatros ou nas praças”. Os textos eram lidos e representados principalmente em casa, às vezes até de uma maneira mais “profissional”, circulavam e eram transmitidos pela oralidade.

Walter Lima Torres Neto, professor da UFPR.
Walter Lima Torres Neto, professor da UFPR. © Arquivo pessoal

“Mas “o Molière que nos chegou no século 18 não era exatamente o Molière que nós conhecemos, mas adaptações, traduções, textos reduzidos”, assinala João Roberto Faria, professor titular da USP e um dos maiores especialistas de teatro do Brasil. Ele lembra que não havia uma vida teatral intensa no Brasil nessa época. “As peças eram representadas nos dias de festas, comemorações, aniversários de governantes. As informações que nós temos são de um teatro muito precário. Não se pode dizer que a gente tenha conhecido Molière nessa altura”, avalia João Roberto Faria.

“É um processo de chegada e por isso a constituição de um Molière é mais no nosso imaginário do que propriamente o mesmo Molière da França”, completa Walter Lima Torres, que é especialista em teatro francês.

Machado de Assis

Foi depois da chegada da corte portuguesa, em 1808, e principalmente após a independência do país, em 1822, que a apresentação de textos franceses se multiplicou. Uma prova de que as pessoas conheciam Molière é que o primeiro dramaturgo brasileiro, Martins Pena (1815-1848), foi apelidado de o Molière Brasileiro.

Uma crônica de 1866, assinada por Machado de Assis (1839-1908), confirma a presença do dramaturgo francês nos palcos: “Há uns bons 30 anos, ‘O Misantropo’ e ‘O Tartufo’ faziam as delícias da sociedade fluminense”, escreveu o autor carioca.

Mas as encenações eram esporádicas. João Roberto Faria tem a impressão de que Molière foi mais lido que representado. O professor da USP organizou um livro reunindo todos os textos que Machado de Assis escreveu sobre teatro e encontrou inúmeras citações de Molière. “Machado tinha especial predileção pelas comédias de caráter. E para alguns autores brasileiros que escreveram farsas, ele diz: ‘aprendam, leiam Molière, mas não o Molière de Monsieur de Pourceaugnac, leiam o Molière do Misantropo, do Avarento. Ele não recomenda que as farsas sejam um modelo para uma dramaturgia no Brasil”, aponta.

João Roberto Faria, professor titular da USP.
João Roberto Faria, professor titular da USP. © Arquivo pessoal

Outros autores importantes que conheciam e citaram Molière foram José de Alencar (1829-1877) e Artur Azevedo (1855-1908), o grande homem do teatro brasileiro do final do século 19.

Com o movimento pelo desenvolvimento de um teatro nacional, os textos estrangeiros foram colocados de lado, sem, no entanto, desaparecer dos palcos. Em 1888, o grande ator da Comédie-Française, Coquelin Aîné, apresentou no Rio de Janeiro com grande sucesso de público a peça “As Preciosas Ridículas”. Até meados do século 20 a presença de Molière é tímida, mas a partir da Segunda Guerra Mundial a situação muda, com a turnê de várias companhias francesas, como a trupe de Louis Jouvet, de Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, o Teatro Nacional Popular e a Comédie-Française.

“Aí, nós vamos ter um repertório que é o Molière a serviço da Terceira República (francesa), o Molière das letras, o Molière que foi transformado na França no sentido de ser aquele autor que vai dar coesão ao que nós hoje em dia chamamos de a língua de Molière”, indica Walter Lima.

Traduções

A tradutora e professora de teatro Angela Leite Lopes acho que Molière, assim como Shakespeare, é um autor de referência que sempre esteve presente no Brasil. “A presença do Molière é constante na história do teatro brasileiro”, afirma a professora carioca. Na segunda metade do século 20, quase “Todos os grupos e atores importantes em algum momento encenaram uma de suas peças”. Isso não acontece com Racine e com Corneille, que são os outros dois autores clássicos do teatro francês.

Angela Leite Lopes, tradutora e professora titular da UFRJ.
Angela Leite Lopes, tradutora e professora titular da UFRJ. © Arquivo pessoal

O grande número de traduções seria uma explicação. O autor de “Escola de Mulheres” é um dos franceses mais traduzidos e praticamente quase todas as suas peças estão disponíveis em português. “Sem dúvida é o mais visível porque é muito difícil traduzir Racine. A poesia dos alexandrinos é muito difícil. Por isso essas peças ficam ausentes dos nossos palcos”, diz João Roberto Faria. Angela Leite Lopes ressalta que traduziu o “Cid” do Corneille no início dos anos 1990, mas que a peça nunca foi montada no Brasil.

Prêmio Molière

Walter Lima Torres Neto defende a tese de que na cultura teatral brasileira a figura Molière se transformou pouco a pouco em um mito, diferente do personagem histórico, Jean-Baptiste Poquelin.

Para o professor da UFPR, o momento de consolidação desse mito foi a criação, antes da França, do prêmio Molière no Brasil, na década de 1960. A premiação, patrocinada pela Air France, coroava peças brasileiras que tratavam da realidade brasileira, escritas por autores brasileiros. “Esse reconhecimento, esse espaço de projeção associado a uma cultural teatral como a francesa criou e consolidou durante um tempo um vínculo muito grande entre a cultura teatral brasileira e francesa. Essas relações não são propriamente reciprocas”, reflete.

O prêmio Molière acabou no Brasil em 1994 por falta de patrocínio. O fato dele não existir mais não significa que o teatro brasileiro está mais consolidado ou independente? “Vamos dizer que o teatro brasileiro hoje encontrou não propriamente uma identidade, porque a identidade do teatro brasileiro é muito híbrida, muito mutante, e fortemente condicionada por uma luta entre oprimidos e opressores", opina Walter Lima Torres Neto. "O teatro tem quase como ‘missão’ denunciar, destacar, problematizar as questões de opressão que o país vai permanentemente vivendo”, aponta. Essa dinâmica sinaliza que “houve uma independência” e que a “cultura teatral francesa e brasileira na atualidade são muito distintas”.

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