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França comemora 400 anos de Molière, dramaturgo francês mais traduzido e interpretado no mundo

Poucas pessoas conhecem seu nome de batismo, Jean Baptiste Poquelin, mas seu nome artístico é mundialmente famoso. Molière simboliza o teatro francês e seu pseudônimo é usado para qualificar a língua francesa: a “língua de Molière”. Ele é o autor francófono mais traduzido, lido e interpretado em todo mundo. Em 2022, aniversário de seus 400 anos de nascimento, Molière será lembrado e celebrado em uma série de eventos durante todo o ano, na França, mas também em vários países.

Molière (1622-1673), retratado por Nicolas Mignard, em 1658, interpretando César em A Morte de Pompeia, tragédia de Pierre Corneille.
Molière (1622-1673), retratado por Nicolas Mignard, em 1658, interpretando César em A Morte de Pompeia, tragédia de Pierre Corneille. © Creative Commons
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Por Florian Riva e Patrice Martin

Os 400 anos de Moilère começam a ser celebrados a partir deste sábado, 15 de janeiro, data de batismo e provavelmente de nascimento do autor em 1622, em Paris. Apesar de passados quatro séculos, a glória nacional do dramaturgo francês permanece intacta.

As peças de teatro criadas por ele continuam atuais e relevantes pelo humor, sátira, gosto pela liberdade e rebelião que transmitem contra a tirania e hipocrisia dos poderosos, sejam eles pais, maridos, tartufos, ou “ridículas preciosas”. Molière escreveu cerca de 30 comédias em verso e prosa, entre elas “O Misantropo”, “O Burguês Fidalgo” e “O Avarento”, que se tornaram clássicos, assim como “Dom Quixote”, de Cervantes, e “Hamlet”, de Shakespeare.

O busto de Molière no Teatro da Comédia Francesa em París.
O busto de Molière no Teatro da Comédia Francesa em París. BERTRAND GUAY AFP/Archivos

Para abordar os traços principais da vida e obra do genial dramaturgo, a RFI entrevistou Martial Poirson, professor de História Cultural, roteirista, ensaísta e curador da exposição “Molière, la fabrique d’une gloire nationale” (“Molière, a fábrica de uma glória nacional”), que será exibida em Versalhes a partir de 15 de janeiro até 17 de abril.

A mostra, que reúne cerca de 200 objetos vindos de vários países, revela o homem que foi Molière, a obra que ele escreveu e interpretou e a herança exuberante que deixou na França e no mundo.

Um francês universal

O que levou Jean Baptiste Poquelin, um homem do século 17, a ser o dramaturgo francês mais conhecido, traduzido e interpretado no mundo todo? Por que o nome de Molière passou a qualificar a língua francesa? Como sua obra teatral inspirou e continua inspirando adaptações nos quatro cantos do mundo?

A resposta “é o talento de Molière de transgredir pelo riso. Ele era amigo do rei (Luís XIV) e ao mesmo tempo do povo, de quem era o porta-voz”, resume Martial Poirson.

O curador ressalta que Molière é a “síntese do espírito francês” e foi o único homem de teatro do século 17 que tinha uma tripla faceta.

“Ele foi ao mesmo tempo escritor, ator/diretor e cortesão. Na segunda metade da vida, ele passou a frequentar a Corte, foi o favorito de Luís XIV e idealizador das grandes festas reais de Versalhes. Ele foi um homem de síntese. (...) Essa tripla faceta permite uma grande plasticidade na realização de um trabalho capaz de se aclimatar a todos os lugares possíveis. Ele também faz a síntese entre a antiga tradição da farsa medieval na França e a grande comédia lírica em verso e em cinco atos, que prefigura a ópera francesa”, detalha Martial Poirson.

Uma antologia das peças de Moliere em inglês e francês datada de 1732 na biblioteca Comedie-Francaise
Uma antologia das peças de Moliere em inglês e francês datada de 1732 na biblioteca Comedie-Francaise BERTRAND GUAY AFP/File

Segundo o curador, o espectro cômico de Molière é de “uma extrema variedade que atravessa todos os gêneros, do mais popular e mais cômico até o mais solene, sem esquecer da dimensão trágica ou patética de algumas de suas peças”.

A herança do dramaturgo francês é mundial e foi adaptada de várias maneiras. Nos países francófonos da África, a obra de Molière ocupa um lugar central. Seus textos chegaram na região na bagagem dos colonizadores franceses, mas eles transmitiram, além da língua, a capacidade de transgressão e libertação pelo riso.

Molière sem fronteiras

Além da exposição “A fábrica de uma glória nacional”, Martial Poirson também organiza o colóquio “Molière sem fronteiras”, que acontece nos dias 9 e 10 de junho no Teatro Montansier de Versailles. O eixo principal do evento é saber como a obra do dramaturgo é traduzida, interpretada e vista em diferentes países e culturas.

Versalhes sedia outros eventos importantes. Em maio, uma estátua de Molière será inaugurada na cidade real, na periferia de Paris, e em junho acontece a 26ª edição do já tradicional “Mês Molière”. O festival programa durante todo o mês, nas ruas e nos teatros da cidade, vários espetáculos em torno da obra do dramaturgo francês. O evento, que atrai todos os anos milhares de visitantes, foi criado pelo atual prefeito de Versalhes, François de Mazières.

Na França, apesar da hostilidade da Igreja Católica, a produção teatral de Molière teve a proteção do rei Luis XIV desde o início. Após a morte do dramaturgo, o “Rei Sol” criou a Comédie Française (Comédia Francesa), conhecida como a “Casa de Molière”, e que hoje é o teatro mais antigo da Europa.

Comédia Francesa

Em Paris, a temporada Molière estreia neste sábado (15) no Teatro da Comédie Française. Após a apresentação inédita da peça “O Tartufo ou O Hipócrita”, a trupe irá, como a cada ano, celebrar o dramaturgo em torno da poltrona usada por Molière na encenação de "O doente imaginário", quando fez o papel de Argan. Em 17 de fevereiro de 1673, ele se sentiu mal em cena e teve tempo de voltar para casa onde morreu logo depois.

A poltrona de Molière é um objeto fetiche no mundo cultural e atrai personalidades do mundo inteiro. Em 1952, de passagem por Paris, Charlie Chaplin fez questão de ir admirar a cadeira do dramaturgo.

A apresentação na Comédia Francesa será transmitida ao vivo em cinemas de todo o país. A temporada Molière acontece até 25 de julho com a montagem e programação das principais peças do autor.

As apresentações teatrais, conferências, reedições e atos previstos na França acontecem também em outros países, como Reino Unido, Itália, Bélgica, Estados Unidos e Brasil e serão cobertas pela RFI durante todo o ano.

Molière e o Brasil

A presença e a influência de Molière no Brasil são antigas e constantes. As peças de teatro do dramaturgo começaram a ser lidas e montadas ainda no período colonial, na segunda metade do século 18, mas foi depois da chegada da corte portuguesa, em 1808, e principalmente após a independência do país, em 1822, que a apresentação de artistas e textos franceses se multiplicaram.

Molière era um dos autores de predileção como indica uma crítica de 1866, assinada por Machado de Assis: “Há uns bons 30 anos, ‘O Misantropo’ e ‘O Tartufo’ faziam as delícias da sociedade fluminense”.

“Molière chega ao Brasil ao mesmo tempo que outros autores clássicos europeus, como Godoni, Corneille ou Voltaire um século mais tarde. Ele faz parte desses autores que são um puro produto de importação. A diferença é que Molière questiona o religioso em um mundo, a América do Sul, ainda dominado pela inquisição, pela Igreja Católica que controla a programação cultural. Ele é para alguns diretores um dramaturgo de resistência, que questiona e convida a tomar distância dos dogmas católicos que na época são extremamente presentes”, lembra o historiador Martial Poirson.

Com o movimento pelo desenvolvimento de um teatro nacional no Brasil, os textos estrangeiros foram deixados de lado, sem, no entanto, desaparecer dos palcos. Em 1888, o grande ator da Comédie Française, Coquelin aîné, apresentou no Rio de Janeiro com grande sucesso de público a peça “As Preciosas Ridículas”.

Durante a Segunda Guerra Mundial, “vários diretores, como Louis Jouvet, vão fugir da ocupação nazista e da guerra na Europa e fazer turnês gigantescas na América Latina e no Brasil. E o que eles levam na bagagem? Molière que continua tendo um vigor intacto. A recepção vai ser um pouco ambivalente, uma vez que Molière é bastante anticristão. Mas ao mesmo tempo, ele é um autor extremamente próximo, que fala da história da sociedade brasileira contemporânea, da dificuldade do casamento, do poder e da autoridade dos pais, do peso de uma igreja que continua ditando os hábitos e valores”, salienta Poirson.

“Molière imaginário”

O clássico Molière é hoje um dos autores franceses mais traduzidos no Brasil. Dramaturgos contemporâneos brasileiros adaptam suas peças, sendo “O Doente Imaginário” seu texto mais popular no Brasil. Montagens como “Molière imaginário”, do Grupo Galpão, em 1996, “Dr. Dodói”, encenado desde 2009 pelos Doutores da Alegria; ou ainda “Molière, uma comédia musical”, em 2018, tiveram grande sucesso de público.

O Liceu Molière do Rio de Janeiro é uma das três escolas francesas do Brasil. Fundado em 1982, ele é um dos estabelecimentos de ensino de excelência da cidade. Em 2022, a instituição participa da comemoração pelos 400 anos de nascimento do dramaturgo, que coincide com os 40 anos de fundação do Liceu carioca. As festividades começam em 26 de março, com um festival gastronômico, uma feira do livro e a apresentação de uma peça de Molière pelos alunos da escola, e se estendem durante todo o ano.

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