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O Mundo Agora

A questão social ferve na Europa

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Há mais de dez anos fui a Frankfurt-am-Main cobrir uma reunião da DGB, a Deutscher Gewerkschaftsbund, a Federação Alemã de Sindicatos. Também participei de uma reunião da Federação e de sindicatos em Berlim. Eu acompanhava uma delegação da CUT brasileira, convidada a participar dos encontros. 

Manifestantes participam de um protesto contra a reforma da Previdência na França, em 7 de março de 2023.
Manifestantes participam de um protesto contra a reforma da Previdência na França, em 7 de março de 2023. REUTERS - SARAH MEYSSONNIER
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Flávio Aguiar, analista político

Numa das exposições, um dos principais dirigentes da DGB expôs que a ação da Central e de um dos principais sindicatos alemães, o IG Metall, o dos metalúrgicos, baseava-se sobretudo numa estratégia que ele chamou de “Win-Win”, valendo-se do verbo inglês “to win”, “ganhar”.

Aquela expressão se poderia traduzir por “Ganha-Ganha”. Referia-se a uma política de cooperação, ao invés de confronto, entre trabalho e capital, sindicatos e patrões.

A moldura desta estratégia era a de uma inflação próxima de zero, aliada a se privilegiar a manutenção de postos de trabalho sobre a perspectiva de novos reajustes ou ganhos salariais.

Esta situação parecia sólida e duradoura como uma rocha. É verdade que a crise financeira de 2008 e o avanço da precarização dos contratos de trabalho expunham algumas rachaduras naquela rocha, mas não suficiente para abalá-la. O esforço maior dos sindicatos mais fortes, como o dos metalúrgicos, era o de estender aos trabalhadores precarizados as condições dos contratos regulares, os de “carteira assinada”, como a gente diria em termos de Brasil. 

Mais recentemente, os efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia catapultaram a inflação, que passou a crescer regularmente, chegando a mais de 10% anuais na média, e dando pinotes e corcovos de 20 a 40% no caso dos alimentos e da energia. Em resumo, aquela rocha, que parecia tão firme, derreteu e a questão social se avolumou, assumindo agora ares de correnteza à solta, e não só na Alemanha.

O resultado é que na semana passada ocorreu algo que não acontecia no país há muito tempo. Durante 24 horas, a Alemanha praticamente parou, graças a uma greve múltipla nos transportes aéreos, ferroviários, urbanos, interurbanos e regionais. Motivo: insatisfação com os salários diante do aumento generalizado do custo de vida. Com a inflação na casa dos dois dígitos anuais, a maioria dos trabalhadores vem obtendo reajustes de 4 a 5%, quando obtêm. Mesmo o poderoso IG Metall conseguiu um reajuste de apenas 8,5% para a categoria.

Protestos na França e no Reino Unido

A insatisfação e os movimentos vêm crescendo de modo exponencial também na França e no Reino Unido. Na França houve seguidas manifestações de rua contra a reforma da Previdência decretada unilateralmente pelo governo de Macron, elevando a idade mínima de 62 para 64 anos.

O movimento é tão forte e tão amplo que muitos analistas apontam que a reforma decretada não é suficiente, por si só, para explicá-lo. O custo de vida também joga combustível na fogueira, além de outros fatores, como meio ambiente e piora nas condições de trabalho. Outro componente não desprezível são os protestos contra a repressão policial, considerada excessiva em muitos casos.

No Reino Unido as greves têm se multiplicado, sendo mais dramática a situação da área de saúde. O caso é emblemático. O Reino Unido tinha um sistema público de saúde considerado exemplar desde a década de 1940, mas ele foi praticamente destruído a partir do governo neoliberal de Margaret Thatcher, e os atuais planos conservadores de austeridade fiscal não o ajudaram a se recuperar. As greves se sucedem sem parar.

Crise veio para ficar

O que acontecerá no plano político? É difícil dizer. Grande parte dos partidos social-democratas e socialistas aderiram a princípios neoliberais nas duas últimas décadas. Conseguirão recuperar parte do eleitorado perdido, que migrou à esquerda e à direita? Os conservadores manterão o poder que hoje têm na França e no Reino Unido? Recuperarão terreno na Alemanha? As esquerdas conseguirão capitalizar o descontentamento? Ou será a extrema direita, como ocorreu nas décadas de 20, 30 e 40 do século passado, com trágicas consequências?

Uma coisa é certa: a crise veio para ficar. Naqueles encontros da DGB alguns dos dirigentes sindicais alemães criticaram veladamente seus colegas da CUT brasileira por serem “muito radicais”. Gostaria de saber o que diriam agora.

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