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Linha Direta

Pedir desculpas pela escravidão é suficiente? Questão da reparação da colonização divide em Portugal

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O presidente português Marcelo Rebelo de Sousa trouxe à tona a questão do pagamento pelos crimes cometidos durante a colonização. A sugestão do chefe de Estado de uma possível indenização pela escravidão divide a classe política. O sistema semipresidencialista que rege o país separa as funções entre o poder executivo e do chefe de Estado, que precisa encontrar apoio na maioria parlamentar para realizar eventuais reparações.

O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa (centro), sugeriu a reparação dos danos provocados pela escravidão durante a colonização. A declaração feita às margens das celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos suscitou duras críticas.
O presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa (centro), sugeriu a reparação dos danos provocados pela escravidão durante a colonização. A declaração feita às margens das celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos suscitou duras críticas. LUSA - JOSÉ SENA GOULÃO
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Caroline Ribeiro, correspondente da RFI em Lisboa

 

No semipresidencialismo adotado em Portugal, o presidente da República é o chefe de Estado e o primeiro-ministro é o chefe de Governo. A aprovação de qualquer medida legislativa depende do Parlamento.

As últimas eleições portuguesas, em 10 de março, resultaram em uma guinada à direita para o Parlamento. Dos 230 deputados, 142 são de partidos do centro à extrema-direita. Os líderes das legendas que formam essa maioria aproveitaram as comemorações do 25 de Abril, que marcaram os 50 anos de democracia no país, para deixar claro que não aprovam a ideia do presidente da República de pagar pelos crimes cometidos contra os povos africanos e indígenas escravizados durante o período colonial.

O líder do CDS-Partido Popular, Nuno Melo, que faz parte do governo, discursou contra o presidente. “Não sentimos necessidade de revisitar heranças coloniais, não queremos controvérsias históricas, nem deveres de reparação que parecem importados de outros contextos”, disse Melo.

Já a extrema-direita foi mais radical. André Ventura, líder do Chega, disse que Marcelo Rebelo de Sousa “traiu os portugueses”. “O senhor foi eleito pelos portugueses. Não foi eleito pelos guineenses, pelos brasileiros. Pagar o quê? Pagar a quem? Eu tenho orgulho da nossa história, eu amo este país”.

O líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, afirmou que indenizações por crimes coloniais vão “contra os interesses do país”. “Quem declara ser nossa obrigação indenizar terceiros pelo nosso passado, atenta contra os interesses do país, reduz-se à função de porta-voz de sectarismos importados e afasta-se do compromisso de representar a esmagadora maioria dos portugueses”.

A cobrança de Marcelo Rebelo de Sousa foi feita dois dias antes das comemorações do 25 de Abril, durante um encontro com jornalistas estrangeiros, no qual a RFI Brasil esteve presente. Questionado sobre o tema pela jornalista Catarina Demony, da agência Reuters, o presidente disse que “só pedir desculpas” seria a “parte fácil” e que Portugal deveria “pagar os custos” da escravatura e dos demais crimes coloniais.

“Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos. Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos. Vamos ver como podemos reparar isso”, disse Marcelo. As declarações do presidente repercutiram com destaque nos principais veículos de comunicação do país.

Durante os mais de dois séculos como colonizador, Portugal foi responsável pelo tráfico de quase seis milhões de homens, mulheres e crianças de países africanos, que foram escravizados principalmente no Brasil. Além disso, os povos indígenas já residentes no que hoje é o território brasileiro também foram submetidos às atrocidades dos colonos portugueses.

A jornalista Catarina Demony se especializou na cobertura do tema das reparações históricas depois de descobrir as origens escravocratas da própria família. Portuguesa, Catarina tem antepassados que traficaram pessoas escravizadas de Angola para o Brasil. A história da família foi contada pela jornalista no documentário “Debaixo do Tapete”, que causou impacto quando foi lançado, no ano passado. Para ela, os legados do passado português se traduzem em “racismo, violência, falta de acessos”.

“O essencial nesse momento é que o presidente da República não fique só pelas palavras, mas que realmente as transforme em ações. E isso passa pelo presidente, pelo Governo português e por outros governos europeus que estiveram envolvidos no tráfico transatlântico e que foram países colonizadores”, diz Catarina à RFI Brasil.

Acompanhando o tema mundo afora, a jornalista diz que, hoje em dia, já há relatórios que tentam quantificar valores para reparações, “que rondam os trilhões de dólares”. Mas como se define quanto valem tantas vidas vítimas de crimes e opressão? Para Catarina, é difícil quantificar.

“Temos grupos que defendem uma reparação maioritariamente financeira. Temos outra parte da reparação histórica que, para alguns grupos, é até mais importante, que é o reconhecimento do erro, que o colonialismo contribuiu para o apagamento de algumas culturas. Temos a reparação que passa por investimento. No Caribe, por exemplo, acreditam que passa por transferência tecnológica, por mudança dos currículos escolares. Portanto, vai muito além do dinheiro”.

Depois da fala do presidente português, a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco, se manifestou. Ela disse que o reconhecimento de Marcelo Rebelo de Sousa pela primeira vez é “fruto de séculos de cobrança da população negra". "A nossa equipe já está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e, a partir daqui, quais passos serão tomados", declarou a ministra.

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