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Linha Direta

Pedido de 12 anos de prisão para Cristina Kirchner leva tensão e protestos às ruas

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Foi um pedido de condenação, mas a repercussão teve o efeito de uma sentença no maior julgamento contra a corrupção da história argentina e o primeiro que julga um líder no poder. Milhares de pessoas manifestaram-se ao longo da madrugada desta terça-feira (23) a favor e contra o pedido de 12 anos de prisão para Cristina Kirchner e a inelegibilidade perpétua para qualquer cargo público. O panelaço dos que celebravam enfrentava-se com a militância organizada.

Pedido de 12 anos de prisão para Cristina Kirchner leva tensão e protestos às ruas
Pedido de 12 anos de prisão para Cristina Kirchner leva tensão e protestos às ruas AFP
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Marcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Milhares de militantes do chamado "kirchnerismo" passaram a noite de segunda para terça-feira (23) em vigília em frente ao edifício onde Cristina Kirchner mora em Buenos Aires. A militância foi convocada para ocupar o espaço dos que protestavam contra a ex-presidente e atual vice-presidente, acusada de liderar uma quadrilha que desviou cerca de US$ 1 bilhão através de obras públicas pelos quais o Ministério Público pediu 12 anos de prisão e a inelegibilidade perpétua para qualquer cargo público.

"Um dos maiores méritos do promotor Diego Luciani foi fazer esta denúncia com essas pessoas no poder e com Cristina Kirchner como a pessoa com mais poder no país. Pela primeira vez na história argentina, vemos um processo desta dimensão com os réus no poder", destaca o analista político Joaquín Morales Solá.

Foi um pedido de condenação, mas, pela repercussão, pareceu uma sentença.

"É a maior manobra de corrupção que se tenha conhecido no país. A corrupção foi a regra. O Estado de Direito foi excluído e esse desequilíbrio deve ser restaurado com uma sentença justa. Está nas suas mãos, senhores juízes, impedir que continuem a banalizar a corrupção sistêmica, orquestrada nas mais altas esferas do Poder Executivo em cujos funcionários infieis o povo depositou a sua confiança", descreveu o promotor Diego Luciani. "Senhores juízes, é corrupção ou Justiça", pressionou.

Panelaço e militância

Nas ruas, a reação foi de protesto e de panelaço contra aquela que governou o país como presidente e que continua a governar, mesmo na vice-presidência.

No começo da noite, logo depois que o promotor pediu a condenação, centenas de pessoas, com bandeiras argentinas, foram até a porta do edifício onde Cristina Kirchner mora. Batiam panelas enquanto gritavam "ladra".

Quem passava de carro buzinava e somava-se ao coro. Aos poucos, as centenas tornaram-se milhares. Foi quando o chamado "kirchnerismo" reagiu. As bases convocaram a militância organizada a defender Cristina Kirchner. O clima foi de tensão entre manifestantes contra e a favor. Houve confusão e a polícia interveio para separar os grupos.

Uma mulher mostra um cartaz com os dizeres "Não há democracia sem justiça, CFK (Cristina Fernandez de Kirchner) presa", em frente à casa casa da vice-presidente argentina, em Buenos Aires, em 22 de agosto de 2022.
Uma mulher mostra um cartaz com os dizeres "Não há democracia sem justiça, CFK (Cristina Fernandez de Kirchner) presa", em frente à casa casa da vice-presidente argentina, em Buenos Aires, em 22 de agosto de 2022. AP - Natacha Pisarenko

"Esta situação é uma estratégia para levar medo à sociedade em geral e aos juízes em particular. As manifestações violentas serão a tática. Cristina Kirchner deveria acalmar a situação, mas, em vez disso, incita as manifestações para que as pessoas vão à sua casa para defendê-la", explica Morales Solá.

Aos poucos, os manifestantes contrários se retiraram. Ficaram os militantes ao longo da madrugada.

Porém, segundo uma sondagem da Universidade de Buenos Aires, os que apoiam Cristina Kirchner são minoria. O estudo realizado nas quatro principais e mais povoadas províncias do país, indica que 80% dos argentinos consideram Cristina Kirchner culpada. Somente 8% acham que ela é inocente. E 12% disseram não ter opinião.

Perseguição política

Para a oposição, as provas apresentadas pelo Ministério Público são "demolidoras e escandalosas" e marcam "um momento histórico para o país". Cristina Kirchner, porém, se diz perseguida pela imprensa e pela Justiça. "Estou diante de um pelotão de fuzilamento mediático-judicial", definiu.

A vice-presidente não rebate as acusações técnicas. Tenta levar o debate para o terreno político depois de 130 audiências, de 114 testemunhas e de tentar cancelar o julgamento.

Em dezembro de 2019, quando o julgamento começou, antes de ser interrompido pela pandemia, Cristina Kirchner tinha acabado de ser eleita vice-presidente. Ela se negou a responder as perguntas da Justiça e disse que "seria absolvida pela história" sem reconhecer o tribunal que a julgaria.

"A mesma ré, Cristina Kirchner, desafiou este tribunal ao afirmar que 'foi absolvida pela história'. A lógica que parece imperar, contrária a uma democracia constitucional, é a de quem ganha as eleições pode governar sem controle nem limite. E que o Poder Judiciário não deve interferir nas suas decisões", criticou o promotor.

Quando percebeu agora que viria o pedido de prisão, Cristina Kirchner resolveu falar. No entanto, pela ordem processual, só poderá falar no final do julgamento. Por isso, anunciou que vai falar nesta terça-feira (23), às 11 da manhã, através das suas redes sociais. 

O presidente Alberto Fernández emitiu uma nota oficial para "condenar" o que também chamou de "perseguição judicial e midiática". Para o presidente, "não há provas" de uma formação de quadrilha e a perseguição, segundo ele, visa "tornar Cristina Kirchner inelegível para as eleições, a exemplo de outros líderes populares como o ex-presidente Lula".

Na Argentina, porém, a "ficha limpa" não se tornou lei, apesar do esforço da oposição. Cristina Kirchner poderá ser candidata nas eleições do ano que vem. Aliás, se condenada, está obrigada a se eleger em qualquer cargo, mesmo legislativo, para ter imunidade parlamentar e evitar a prisão. Até que uma eventual sentença fique firme, depois de confirmada pelo Supremo Tribunal, vão passar anos. Em fevereiro, completará 70 anos, idade a partir da qual a prisão domiciliar é garantida.

Crime orquestrado no poder

O promotor Diego Luciani pediu que Cristina Kirchner seja condenada a 12 anos de prisão efetiva por liderar uma quadrilha integrada por um total de 12 pessoas que cometeram fraude ao Estado por cerca de US$ 1 bilhão, um valor que ainda precisa ser atualizado e que poderia superar os US$ 2,5 bilhões.

"A extensão do dano causado não se reflete apenas ao erário público. Projeta-se num sem número de consequências indiretas como a perda da eficiência nas contratações, a ineficiência no uso dos recursos públicos, o descrédito na administração pública, a falta de confiança na atividade administrativa, a má reputação do país perante a comunidade internacional à luz dos compromissos internacionais no combate à corrupção", citou o promotor Luciani.

Segundo a acusação, a quadrilha de Cristina Kirchner começou quando o seu falecido marido, Néstor Kirchner, era presidente. E continuou quando ela foi eleita duas vezes. No total, foram 12 anos entre 2003 e 2015.

Eram integrantes da quadrilha o ex-ministro do Planejamento, Julio de Vido e o ex-secretário de Obras Públicas, José López, além de Lázaro Báez, um testa de ferro que os Kirchner transformaram em empresário.

Todos esses nomes já estão condenados em outros processos. José López, por exemplo, foi flagrado em 2016 quando tentava esconder num convento sacolas com mais de US$ 9 milhões.

"A ação desses funcionários corruptos implicou uma violação dos direitos humanos porque lesaram os princípios básicos de uma democracia de igualdade de oportunidades para os cidadãos. Só teve acesso aos direitos aqueles que puderam comprá-los ou, pior ainda, quem se apropriou deles, valendo-se do seu cargo e da sua posição de privilégio", acusou o promotor.

Este processo julga apenas os eventuais crimes cometidos com as obras públicas na província patagônica de Santa Cruz, berço político dos Kirchner. Há outros três processos nos quais Cristina Kirchner também é ré. Esses processos são mais amplos e envolvem todo o país.

"Os atos de corrupção afetam seriamente o funcionamento e a credibilidade do sistema democrático. Enfraquecem a legitimidade do sistema político", sublinhou Diego Luciani.

Empreiteira criada dias antes da posse

Durante os 12 anos dos governos Kirchner, todas as obras na província de Santa Cruz foram ganhas pelo empresário Lázaro Báez. Os Kirchner colocaram Lázaro Báez para comandar uma empresa, a Austral Construções, criada dias antes da posse de Néstor Kirchner em maio de 2003 e desmantelada dias antes do final do mandato de Cristina Kirchner em dezembro de 2015.

Das 51 obras estudadas, metade nem foi terminada. Mesmo assim, foram pagas integralmente.

Segundo a acusação, as licitações seriam forjadas com empresas de fachada que também pertenciam a Lázaro Báez, nesse caso, como falso participante. 

"Criaram um empresário para garantir a sua conivência na manobra. Compraram empresas construtoras e empregaram pessoas para fingir uma concorrência, para dar aparência de legalidade e para manter a manobra em condições de impunidade", explicou Luciani, acrescentando que "entre outros abusos grosseiros de poder", "adotaram regulamentações para conseguir a ausência de controles".

Depois de paga a obra, o dinheiro voltava ao casal presidencial através de dois hoteis que os Kirchner construíram. Lázaro Báez e os Kirchner também teriam forjado diárias para lavar o dinheiro. Os hoteis viviam cheios na contabilidade, embora não tivessem nenhum hóspede.

Se Lázaro Báez não tinha posses antes de 2003, ao terminar o segundo mandato de Cristina Kirchner, já era dono de 415 mil hectares em Santa Cruz, equivalentes a mais de 20 mil cidades de Buenos Aires. E essa é apenas uma parte do dinheiro que a Justiça quer agora recuperar.

"Insisto: é corrupção ou justiça. E os senhores têm a decisão", concluiu o promotor Diego Luciani.

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