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Linha Direta

Guerra na Ucrânia: Governo de Alberto Fernández faz o contrário do que a maioria dos argentinos quer

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Estudo da consultora Synopsis comprova o sentimento que argentinos, ucranianos e até mesmo russos manifestam com cada vez mais frequência nas ruas de Buenos Aires. Entre as petições estão o repúdio explícito à Rússia por parte do presidente Alberto Fernández, sanções econômicas contra Vladimir Putin e suspensão do canal de TV Russia Today, pedidos que o governo descarta, fazendo com que os protestos na Argentina não peçam apenas o fim da guerra, mas incluam demandas específicas.

Manifestantes contra a posição da Argentina
Manifestantes contra a posição da Argentina © Márcio Resende
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

É comum que, durante uma guerra, os governos decidam tomar uma postura diferente daquela que a maioria do seu povo quer? Um minucioso estudo da consultora Synopsis indica que a maioria dos argentinos quer que o governo condene explicitamente a invasão da Ucrânia por parte da Rússia e que aplique sanções econômicas contra Vladimir Putin. Porém, o presidente argentino decide por um caminho que, na prática, favorece a Rússia, interpretam os argentinos.

Desde que a guerra começou, o governo argentino tem tido uma postura ambígua: primeiro evitou usar as palavras "invasão" e "ataque", assim como o nome do agressor "Rússia" ou "Vladimir Putin".

"Não houve por parte do presidente Alberto Fernández uma declaração explícita de condenação nem de repúdio à decisão russa de invasão. A maioria vê o governo num lugar errado, diferente daquele onde as pessoas gostariam que estivesse", indica à RFI o cientista político Lucas Romero, diretor da Synopsis.

É como se a Argentina preferisse não prejudicar a aliada Rússia, mas, ao mesmo tempo, devido à pressão internacional, procurasse um equilíbrio.

Uma elevada maioria de 95,4% dos entrevistados em todo o país afirma saber sobre a guerra. Desses, 65,2% avaliam de forma negativa a atitude da Rússia. E sobre a posição ambígua da Argentina, 59% rejeitam a postura do presidente Alberto Fernández.

É nessa maioria que aparece, por exemplo, a manifestante Liliana Esquerra (70), quem foi à marcha de domingo (6) com cartazes que ressaltam a aliança ideológica entre os integrantes do governo argentino com Vladimir Putin.

Liliana repudia a postura do governo argentino
Liliana repudia a postura do governo argentino © Foto Márcio Resende

"A minha postura é de total repúdio ao governo que nos representa neste momento. Tenho vergonha de que não repudiem este ditador porque a maioria do povo argentino quer isso. Não estamos de acordo com os governos de ditadores como Putin ou Maduro", critica Liliana, relembrando que, no último dia 3 de fevereiro, o presidente argentino esteve no Kremlin propondo a Putin "uma presença mais decidida na Argentina", em substituição do papel dos Estados Unidos para o qual ofereceu a Argentina como "porta de entrada da Rússia na América Latina".

"Fico muito triste. Eu me envergonho. E como eu, muitos", afirma.

E são mesmo muitos, segundo a Synopsis. Para 58,6% dos argentinos, a percepção é a de que o presidente Alberto Fernández apóia a Rússia. Outros 32,2% entendem que a posição do governo é neutra. Apenas 5,6% interpretam que a Argentina apóia a Ucrânia.

Do outro lado, quando perguntados sobre qual deveria ser a posição do governo argentino no conflito, apenas 12,8% acham que a Argentina deveria apoiar a Rússia, enquanto 51,9% defendem um apoio à Ucrânia e 33,9% preferem uma posição neutra.

"Na prática, do lado do agressor"

Com essa certeza da maioria, as manifestações contra Vladimir Putin e por uma reação mais concreta do governo argentino multiplicam-se, convocando os argentinos em geral e a comunidade ucraniana que, em proporção à população argentina, é a maior da América Latina, com cerca de 500 mil integrantes.

Em entrevista com a RFI, o presidente da Representação Central Ucrânia na Argentina e cônsul honorário em Buenos Aires, Pedro Lylyk, define a suposta neutralidade do governo argentino como uma forma de encobrir o agressor.

Presidente da Representação Central da Ucrânia e cônsul honorário em Buenos Aires, Pedro Lylyk
Presidente da Representação Central da Ucrânia e cônsul honorário em Buenos Aires, Pedro Lylyk © Foto Márcio Resende

"O que nós ucranianos aqui na Argentina pedimos é que façam o mesmo que 134 nações fizeram. Pedimos sanções que vão da retirada do sinal de TV Russia Today à suspensão dos tratados de cooperação entre a Argentina e a Rússia. A comunidade ucraniana na Argentina recebeu muito mal a suposta 'neutralidade' da Argentina. Se você é neutro com um agressor, você não está neutralizando. Ou se está com o agredido ou com o agressor", interpreta Lylyk.

Segundo a Synopsis, 55,9% dos argentinos consideram que o governo deveria condenar a Rússia e adotar sanções contra Vladimir Putin.

Ações concretas contra a Rússia

É isso o que pedem os manifestantes que, na semana passada, foram pela terceira vez à Embaixada da Rússia e duas vezes à Praça de Maio. No sábado, fizeram uma manifestação diante do conjunto habitacional onde moram os diplomatas russos. No domingo, uma marcha numerosa pelo Centro de Buenos Aires. E, na próxima sexta-feira (11), farão outro protesto em frente à Casa Rosada.

Uma das organizadoras desse novo protesto é a ucraniana Hanna, 33, que prefere manter o sobrenome em segredo para evitar possíveis represálias. Os pais de Hanna chegaram a Buenos Aires na sexta-feira (4), depois de deixarem Kiev. O avô está na província de Sumy, rodeado pelos russos.

Hanna quer que governo argentino abandone a suposta neutralidade que favorece a Rússia
Hanna quer que governo argentino abandone a suposta neutralidade que favorece a Rússia © Foto Márcio Resende

"Pedimos ao presidente da Argentina que aplique sanções econômicas contra a Rússia, que não tenha mais negócios com os russos porque esse dinheiro será usado por Putin na guerra contra a Ucrânia. Espero que a Argentina mude a sua neutralidade. Não quero viver em um país cujo governo olha para a briga dos outros países para depois assumir de que lado fica. Pedimos ao presidente que não fique neutro na guerra", explica Hanna à RFI.

Enquanto no mundo os protestos pedem a retirada das tropas russas e o fim da guerra, as manifestações na Argentina incluem, também, pedidos de sanções econômicas contra a Rússia, uma condenação explícita por parte do governo argentino e a suspensão do canal de TV RT, Russia Today, por divulgar fake news a favor de Vladimir Putin.

Russos se solidarizam com a Ucrânia

A russa Alyona, que não quis dar seu sobrenome com medo de expor sua família a represálias, chegou à Argentina há apenas três semanas. É um exemplo de que uma coisa são os governantes; outra, o povo. Ao lado de outros russos, Aliona tem ido a todas as manifestações com um cartaz que esclarece que Putin não é a Rússia.

"Não só os ucranianos protestam. Nós russos estamos em choque com o que está acontecendo. Estamos todos com a Ucrânia nesta guerra porque Putin não é a Rússia. Os russos não querem esta guerra. A única pessoa que a quer é Putin", diferencia.

Em entrevista à RFI, Alyona, 33 anos, conta que também quer que a Argentina aplique sanções econômicas contra a Rússia, mesmo que isso signifique prejudicar a sua própria família, os seus amigos na Rússia e até ela mesma.

A russa Aliona quer que Argentina aplique sanções contra Vladimir Putin mesmo que amigos e parentes sejam prejudicados pela medida
A russa Aliona quer que Argentina aplique sanções contra Vladimir Putin mesmo que amigos e parentes sejam prejudicados pela medida © Foto Márcio Resende

"Como russa, tenho todas as minhas contas e os meus cartões de crédito russos. Claro que eu, os meus amigos russos e a minha família vamos sofrer essas sanções, mas estou pronta para isso porque o meu sofrimento com sanções econômicas não se compara com o sofrimento dos ucranianos e dos meus amigos ucranianos que estão na Ucrânia sob mísseis neste exato momento. Estou pronta para essas sanções, se isso ajudar a parar essa guerra", defende.

Governo descarta medidas contra a Rússia

O chanceler argentino, Santiago Cafiero, descartou que o governo aplique sanções econômicas contra a Rússia porque "não considera que ajudem a gerar paz" e descartou também suspender o canal russo Russia Today porque "a Argentina valoriza a liberdade de imprensa". O ministro alegou que a Argentina tem votado contra a Rússia na ONU.

"A Argentina condena a invasão russa na Ucrânia nos foros das Nações Unidas, o âmbito correto. A Argentina não considera que as sanções unilaterais sejam um mecanismo para gerar paz e, em relação a suspender os sinais de TV, a Argentina é contra isso porque nós valorizamos a liberdade de imprensa", argumentou Cafiero.

O estudo da Synopsis identifica que 23,1% dos argentinos avaliam de forma positiva a invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Também que 25,1% veem com bons olhos a suposta neutralidade. E que 39,7% defendem que a Argentina não prejudique a Rússia nem com condenações nem com sanções econômicas.

Polarização interna se reflete na guerra

Segundo a Synopsis, os que estão por trás dessa postura pró-Rússia são os eleitores do governo. Entre os que querem sanções da Argentina contra a Rússia, 87% votam na oposição ao presidente Alberto Fernández. Entre os que não querem sanções, 81% são eleitores do governo.

"A variável que melhor explica como os argentinos interpretam esta guerra é a variável política interna. Olham para a guerra de acordo com a variação do voto", ressalta Lucas Romero, da Synopsis.

Para o analista político, os números do seu estudo têm antecedentes para além do conflito bélico. Romero recorda a sintonia da última fase do governo da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), quando a relação bilateral foi elevada à aliança estratégica integral.

Por outro lado, explica o analista, existe na militância da coalizão governista uma adoração pela Rússia como antagonista aos Estados Unidos, principal alvo das críticas do chamado 'kirchnerismo', facção dominante no poder argentino. Vladimir Putin é aliado porque se opõe aos Estados Unidos.

"O conflito dominante para certo setor do governo são os Estados Unidos. A Rússia é a contradição principal desse conflito dominante. Consideram Vladimir Putin aliado porque é visto como o inimigo do meu inimigo", aponta Lucas Romero.

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