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Linha Direta

De gripezinha a país de maricas, Bolsonaro abusou do vocabulário para desdenhar da pandemia em 2020

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A retrospectiva de 2020 tem um denominador comum, histórico e trágico entre os países, que é o impacto do novo coronavírus em suas populações. No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em fevereiro e não demorou para o país, hoje com quase 200 mil mortos, ocupar lugar de destaque na crise sanitária, atrás apenas dos Estados Unidos em número de óbitos.

O presidente Jair Bolsonaro sorri durante um ato celebrado em 9 de dezembro de 2020 em Brasilia.
O presidente Jair Bolsonaro sorri durante um ato celebrado em 9 de dezembro de 2020 em Brasilia. Sergio Lima AFP
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Catástrofe com rubrica da presidência da República que desde o início desdenhou do perigo. O ano foi marcado por algumas das célebres frases de Jair Bolsonaro sobre a pandemia:

Em Miami, Estados Unidos, em março, disse que "obviamente, temos no momento uma crise, uma pequena crise, né. No meu entender muito mais fantasia a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo".

No mesmo mês, quando saiu para dar um passeio, provocou aglomeração: “Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Tomos nós iremos morrer um dia." 

O presidente minimizou a pandemia várias vezes. Mas uma de suas frases mais emblemáticas foi certamente:

"Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não, tá ok?"

Em abril, ao responder a perguntas de jornalistas sobre as mortes por Covid-19, em frente ao Alvorada, ele lançou um "Eu não sou coveiro, tá?". E, no mesmo mês, ao ser indagado por um jornalista sobre o crescimento no número de mortes, deu uma declaração que ganhou destaque na imprensa, dentro e fora do Brasil: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", disse o presidente se referindo ao seu nome Jair Messias Bolsonaro.

Enquanto o mundo travava uma guerra por respiradores, o presidente propagandeava a cloroquina como panaceia para a crise e exigia das autoridades sanitárias a aprovação de um protocolo para o uso da droga nos hospitais brasileiros. Em maio, repetiu, brincando, um mantra em favor do medicamento: "Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína."

Valsa de ministros

Foram dois ministros da Saúde demitidos em plena curva ascendente de casos, Henrique Mandetta e Nelson Teich. Um militar interino, Eduardo Pazuello, sempre pronto a obedecer o presidente, ficou no posto. Em meio às críticas do presidente ao isolamento, o Supremo Tribunal Federal garantiu aos estados o poder sobre o distanciamento social. Foram ao menos cinco meses com mais de 800 mortes por dia no Brasil, hospitais sem vagas, com médicos e enfermeiros escolhendo quem teria a chance numa UTI.

Em outubro, quando desautorizou o ministro da Saúde na negociação com o Butantan, disse que não compraria vacinas da China. "É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso", insistiu. 

Em novembro, num evento no Palácio do Planalto, outra declaração deu o que falar:

"Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa?"

Com uma crise social avassaladora por causa do vírus, o governo começou a pagar em abril o auxílio emergencial a mais de 40 milhões de pessoas e permitiu que patrões reduzissem o salário dos empregados. Mas Bolsonaro, que circulou sem máscara, aglomerou pessoas e pegou Covid-19, manteve a retórica até na hora de tratar da vacina:

“Lá no contrato da Pfizer, está bem claro que eles não se responsabilizam por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu", disse o presidente durante um evento. "Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver isso. E, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas.”

Crises também na política

A crise não se limitou ao coronavírus e a política respondeu por memoráveis capítulos da novela 2020. Em abril, o ex-juiz símbolo da Lava Jato deixou o governo em meio a tentativas de Bolsonaro de colocar um delegado de sua confiança, Alexandre Ramagem, na Polícia Federal. Sérgio Moro saiu atirando.

“O presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que ele queria uma pessoa do contato dele, que ele pudesse ligar, colher relatório de inteligência. Não é esse o papel da Polícia Federal”.

Além das investigações contra o filho, Flávio Bolsonaro, um dos focos de tensão do presidente eram inquéritos, como o que apura quem financiou atos que pediam o fechamento do congresso e do STF. Num dos atos em Brasília, quando manifestantes ergueram cartazes e gritos de guerra pedindo a volta do AI-5, período mais doloroso da ditadura militar, o presidente foi até os manifestantes lhes dar apoio. “Quem está aqui acredita no Brasil. Nós não vamos negociar.”

Mas Bolsonaro caiu no colo de partidos do centrão, que tanto criticou durante a campanha justamente por causa do fisiologismo. Para afastar o risco de impeachment, cedeu ao grupo vários cargos e até justificou a desidratação da Lava Jato. “Eu acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo.”

Florestas em chamas

Em meio ao caos sanitário e político, o país assistiu à devastação do Pantanal, com animais carbonizados e a flora destruída, além do aumento também do desmatamento na Amazônia. No ano em que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu passar a boiada da desregulamentação no setor, na famosa reunião ministerial, cujo conteúdo o STF tornou público e chocou muita gente. 

"Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo", disse Salles. "Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”, completou o ministro. 

Foi dessa reunião que o então responsável pela pasta da Educação, Abraham Weintraub, defendeu a prisão de integrantes do STF pelas investigações contra o governo. O ministro, que como seu antecessor Ricardo Vélez colecionou polêmicas e quase nada de prático fez, acabou demitido diante da pressão de autoridades do Judiciário. Mas deu um jeito de usar ainda o passaporte especial ligado ao cargo para entrar nos Estados Unidos quando as fronteiras já estavam fechadas por causa da pandemia, e ainda ganhou um cargo no Banco Mundial.

A política terminou com Bolsonaro e João Dória antecipando as prévias de 2022, o presidente amargando derrota nas eleições municipais e reconhecendo enfim a derrota de Donald Trump perante Joe Biden nos Estados Unidos.

E se lá as ruas foram tomadas após a morte de um homem negro por um policial branco, aqui um caso de racismo também chocou o país, com a morte de João Alberto espancado por seguranças do Carrefour em Porto Alegre. Marca triste de um ano que também teve nas manchetes diárias crianças vítimas da ação desastrosa de policiais, como as primas Emily e Rebeca, de 4 e 7 anos, no Rio.

“Isso não pode mais acontecer. Parem de matar nossas crianças. E essa violência vem de quem deveria nos proteger. Mataram minhas meninas”, disse a avó de Rebeca e tia de Emily, Lídia Santos.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) diz que no ano passado foram quase 5 mil crianças e adolescentes que perderam a vida de forma violenta no país. Este ano, somente no Rio, foram 12 crianças vítimas de bala perdida.

Os casos de feminicídios como o da juíza Viviane Vieira, morta a facadas pelo ex-marido na frente das três filhas na véspera do Natal, também chocaram o país. Foram mais de 640 vítimas só no primeiro semestre, de acordo com o FBSP.

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