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Brasil-África

Modelos baianos falam da representatividade negra no mercado da África do Sul

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Não foi da noite para o dia que esses dois conseguiram estrelar campanhas de marcas de luxo. Unidos pelo trabalho, os modelos Fernanda e Adalton Barbosa se conheceram gravando um comercial e estão juntos há 12 anos. Os dois são de Salvador, Bahia, e começaram a carreira cerca de 15 anos atrás. Ela ainda era adolescente, tinha 16, como muitas nessa profissão.

Os modelos Fernanda e Adalton Barbosa se conheceram gravando um comercial e estão juntos há 12 anos.
Os modelos Fernanda e Adalton Barbosa se conheceram gravando um comercial e estão juntos há 12 anos. © Divulgação/ Arquivo pessoal
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Vinícius Assis, correspondente da RFI na África do Sul

Já ele começou a carreira com pouco mais de 20 anos de idade. O foco deles não são as passarelas, mas, sim, o mercado publicitário. Em 2013 ambos se mudaram para São Paulo, a mais cobiçada cidade brasileira para quem é desta área. Três anos depois, veio a ideia de dar um passo a mais na carreira: o mercado internacional. Foi, então, que fizeram contato com agências da África do Sul. Fernanda, que, por conta de uma campanha de shampoo na Argentina, já tinha feito a primeira viagem dela para fora do Brasil, acabou sendo convidada para uma temporada de três meses no país de Nelson Mandela, especificamente na Cidade do Cabo (ou Cape Town, em inglês).

“Foi um desafio muito grande mesmo, eu lembro que eu não queria vir de jeito nenhum, viu. Eu fiquei com muito medo. O inglês foi o que mais me deixou apavorada. Vai ser muito difícil, eu estava com isso na mente, mas ainda bem que eu aceitei o desafio de vir. Passei os meus perrengues, que todo mundo que não fala inglês vai passar, mas valeu muito a pena mesmo”, lembra.

Os modelos Fernanda e Adalto Barbosa
Os modelos Fernanda e Adalto Barbosa © Divulgação

Não saber se comunicar em inglês - um dos 12 idiomas oficiais da África do Sul - potencializou o nervosismo, mas não a impediu de encarar este desafio. Ela veio, mesmo sem dominar o inglês, para um país onde praticamente todo mundo fala mais de um idioma.

“Absolutamente todo mundo que eu conheci aqui não só falava inglês, mas falava, tipo assim, quatro idiomas facilmente. Até o mendigo da rua”, destaca. Ela conta que isso a fez se sentir mal, por ser de uma potência gigantesca como o Brasil, onde se fala apenas português e não há muito incentivo para que se fale fluentemente outro idioma.

Quando o contrato terminou, ela voltou para São Paulo. Aquele medo do início deu lugar ao sentimento de saudade.

“Me bateu uma tristeza. Fiquei mal, doente e Adalto sem entender nada”, contou.

Ainda em 2018, houve mais um convite, desta vez para passar seis meses na África do Sul. No fim daquele ano, Adalton acabou vindo também, mas a passeio. Era a primeira viagem internacional dele. Até que em 2019 os dois assinaram contrato de três anos com uma agência de modelos e se mudaram para a paradisíaca cidade que precisavam desbravar.

“Foi paixão a primeira vista aqui nesse lugar maravilhoso”, disse Adalton, que entende do que Fernanda estava falando quando voltou para o Brasil. Mas a falta da fluência em inglês também foi um desafio para ele no início. Mas os dois voltaram para o Brasil, em abril de 2019, até que conseguiram, quatro meses depois, o visto de três anos para voltar para a África do Sul.

Negros no mercado publicitário sul-africano

No país estigmatizado pelo apartheid, regime de segregação racial que vigorou de 1948 até o início dos anos 90, e deixou marcas ainda perceptíveis, os negros representam cerca de 80% da população. Os brancos correspondem a quase 8%. Tem ainda os descendentes de indianos e os pardos, que somam os 12% restantes. É como oficialmente a população é dividida no censo sul-africano. O tom de pele de que vem de um país diverso, étnico-racialmente falando, como o Brasil é uma questão importante.

“Isso é muito bem dividido e a moda é falada diretamente para cada tipo de grupo, coisa aqui no Brasil não é tão assim. Por exemplo: no Brasil é muito fácil uma menina mestiça, de pele bem clara, ocupar o espaço de uma menina negra. Não estou entrando em mérito aqui de quem é negro de quem não é”, frisa Fernanda, lembrando que apenas está comparando com a realidade do mercado na Cidade do Cabo, onde “quando eles querem uma modelo negra, eles querem uma modelo negra”.

Ela lembra que brasileiras de pele mais clara e cabelos cacheados já vieram para a África do Sul e não trabalharam muito bem como achavam que trabalhariam. “Qual o grupo dessa menina aqui? Ela não vai encaixar quando o briefing pedir uma modelo negra. Em contrapartida, ela não vai encaixar tanto quando o briefing pedir uma modelo coloured (como os mestiços são chamados na África do Sul)”, esclareceu.

Adalton enfatiza que, de um modo geral, o mercado para modelos negros é difícil.”A gente já sai perdendo para os brancos”, lembra. Mas ele, que usa dreads nos cabelos, diz que na África do Sul consegue trabalhar para marcas que vendem produtos mais elitizados, o que certamente não aconteceria se estivesse no Brasil. Mas mesmo assim eles enfrentam desafios por causa de suas características físicas. E por conta disso, Fernanda trabalha mais do que Adalton.

“Eles dizem que o perfil de Fernanda é o perfil europeu. É a negra dos traços finos. Já eu, tive muita dificuldade de trabalhar no Brasil porque eu tenho lábios grandes e tal. Nesse tempo eu me cobrava muito. Sempre eu perdia para um modelo negro da pele mais clara com traços mais finos. Isso me deixava muito triste. Porém, aqui é bem legal para mim, porque eu me passo realmente como um africano”, disse.

Adalton constantemente é comparado com os homens nigerianos e conta que o cabelo rastafári o faria ser visto apenas como “um negro descolado” no mercado da moda em São Paulo, deixando claro que a visão do negro endinheirado, dirigindo carros de luxo, praticamente inexiste no Brasil. “Aqui é diferente”, destaca o modelo.

Fernanda faz questão de ressaltar a diferença entre modelos, de verdade, e profissionais do sexo que apenas se apresentam como modelos, mas acabam manchando a imagem de quem trabalha seriamente como eles. Essa confusão é “comum” por aqui também, onde - como no Brasil - existem os chamados books rosa e azul. A expressão é usada para definir o catálogo de mulheres e homens que fazem programas sexuais e são agenciados para isso. “Nesse mundo da moda, às vezes a pessoa pode se ludibriar facilmente com propostas. Pode acontecer, mas não dá para generalizar toda uma comunidade”, disse.

É público e notório que nem tudo são flores neste meio. Em qualquer lugar do mundo, os cuidados são necessários para evitar que um sonho vire pesadelo. “Tem que prestar bastante atenção em qual agência você está, porque existem agências sérias e outras que não são serias”, alertou Adalton.

Fernanda reforçou o alerta, lembrando que “muitas pessoas têm o sonho de ser modelo, entram em qualquer agência”, que pode ser “picareta”, onde os próprios “bookers” (agenciadores) as oferecerão para trabalhos que não tem a ver com o universo da moda e ainda afirmam que para elas serem modelos têm que passar por aquilo. “Procure uma agência séria. Procure ver modelos dessa agência. Vá no perfil da agência, veja os trabalhos que estão ali. Vá ao perfil do modelo, pergunte se a agência é séria de verdade”, recomendou. Os dois lembram que muitos podem cair em golpes quando acreditam que estão indo viajar em busca de oportunidades no mercado internacional da moda, mas acabam sendo vítimas de tráfico de pessoas.

Pandemia e um plano B

A África do Sul é o país que, até hoje, registrou o maior número de pessoas com COVID-19 do continente africano. E a pandemia atingiu em cheio o setor no qual esses brasileiros trabalham. O presidente Cyril Ramaphosa implementou um dos mais rigorosos confinamentos nacionais obrigatórios do mundo.

Como modelos, os baianos recebem apenas se trabalham. Mas houve um momento em que os trabalhos pararam de aparecer. Antes dos casos surgirem por aqui, o coronavírus já estremecia a Europa. Por conta disso, os clientes europeus já tinham interrompido campanhas publicitárias com cenários sul-africanos. Foi quando um passatempo virou uma alternativa para garantir a renda do casal. Adalton começou a se dedicar à cozinha e experimentar receitas, como de bolos. Eles decidiram começar a vender a produção e criaram a Baianos in Cape Town. O foco é comida baiana, mas também vendem pão de queijo e feijoada. “Foi uma forma de não se amedrontar com a dificuldade que estava se iniciando”, lembra Fernanda.

A embaixada e o consulado-geral do Brasil na África do Sul chegaram a bancar um avião inteiro para enviar brasileiros de volta no início da pandemia. Mas mesmo diante da incerteza sobre o futuro, o casal resolveu não voltar para São Paulo e, naquele momento, investir da venda de comida, o que os conecta diretamente com as suas famílias.

A gastronomia brasileira é diversa, assim como a africana. Fernanda conta que chegou a chorar em um evento com um chef nigeriano quando provou um prato que a trouxe lembranças da infância.

“Ele fez um tipo de sopa, que eu não sei dizer qual era o nome, mas que lembrou em cheio a comida que a minha avó fazia para mim. A gente tem o sarapatel, que é típico da Bahia, mas a forma com que minha avó fazia em casa era diferente. E era muito semelhante com a forma como ele fazia. Quando eu botei na boca, eu comecei a chorar”, disse. Aliás, os dois hoje se dizem fãs da comida nigeriana, exatamente por terem se identificado especialmente com os pratos e temperos deste país africano, mas a feijoada angolana, com verduras, também caiu no gosto do casal baiano. “Meu Deus, a minha avó fazia exatamente isso”, destacou Fernanda.

Os trabalhos como modelos já voltaram, o que eles conciliam com a venda de comida brasileira, sem falar na produção de conteúdo para o canal que criaram na internet para falar da experiência deles na Cidade do Cabo. Dizem que, por enquanto, uma atividade não atrapalha a outra. Inicialmente a meta do casal era viver na África do Sul por três anos, cumprindo o contrato com a agência de modelos, que começou em 2019 e acaba no fim deste ano. Quando perguntados se já decidiram o que fazer quando o contrato acabar, os dois responderam juntos: vão continuar na África do Sul.

Com a notícia de que a agência de modelos sul-africana quer renovar o contrato dos baianos por mais três anos, os dois já se preparam para extender os vistos de trabalho, o que não é algo tão simples na África do Sul. “A gente já criou raízes”, finalizou Fernanda.

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