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A voz das afegãs: "As coisas mudaram para as mulheres, não vamos deixar ninguém nos impor limites"

Depois que o Talebiã assumiu o poder no Afeganistão em 15 de agosto, as mulheres afegãs temem um retorno à vida que tinham há vinte anos, sem liberdade para trabalhar ou estudar livremente. Enquanto a ONU considera que o tratamento das mulheres pelos extremistas seja "uma linha vermelha" a não ser cruzada, a RFI dá voz às mulheres afegãs, no exílio ou no Afeganistão, com uma programação especial dedicada a elas nesta sexta-feira (27).

Mulheres afegãs participam de uma manifestação em Cabul em 2 de agosto de 2021, contra as violações de seus direitos pelo Talibã.
Mulheres afegãs participam de uma manifestação em Cabul em 2 de agosto de 2021, contra as violações de seus direitos pelo Talibã. AFP - SAJJAD HUSSAIN
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"Uma linha vermelha fundamental será como o Talibã trata mulheres e meninas e respeita seus direitos à liberdade, liberdade de movimento, educação, auto-expressão e emprego, de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos", a alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet disse na  terça-feira (24), durante uma reunião especial do Conselho de Direitos Humanos sobre o Afeganistão.

Desde o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão, as mulheres afegãs temem não poder retornar à escola ou universidade, como acontecia nos anos 1990.

"As mulheres adorariam continuar seus estudos, mas isso depende da situação no país", disse Shkula Zadran, ex-representante da juventude afegã nas Nações Unidas. "Se o Talibã não permite que elas estudem numa faculdade, qual é a solução alternativa para elas? Talvez por enquanto seria bom continuar tendo aulas online, como temos feito por causa da Covid-19. Permitiria que as meninas continuassem os estudos, em casa, até que a segurança e a situação política melhorassem ”, opina.

Aluna de mestrado em relações internacionais em Cabul, ela continua esperançosa. “As mulheres afegãs não são mais quem eram há 20 anos. Hoje elas são talentosas, comprometidas, têm grandes sonhos e ninguém pode impedi-las".

A porcentagem de meninas na escola primária em 2001 era de 0%; passou a 43% em 2002 e 83% em 2018, segundo dados da Unicef e de outras agências da ONU. No país, 3,7 milhões de crianças não estão escolarizadas, das quais 2,2 milhões sao meninas. Apenas 37% das adolescentes  e 19% das mulheres adultas sabem ler.

Em 2009, o Afeganistão adotou uma lei que protege as mulheres contra toda forma de violência, mas metade dos crimes contra as mulheres não chega aos tribunais, mesmo com provas concretas.

Feministas

"Recentemente, uma mulher afegã obteve a pontuação mais alta no exame nacional de admissão à universidade. Portanto, é óbvio que se o Talibã quiser nos impedir, se quiser nos restringir, será impossível para eles. Eles têm que nos enfrentar, eles têm que enfrentar essas jovens e corajosas afegãs, uma geração corajosa. Claro que temos medo", disse. A proteção dos direitos, liberdades e vitórias das mulheres estão entre as maiores preocupações das afegãs ouvidas pela RFI. "Mas, desta vez, a diferença é que não deixaremos ninguém nos limitar ou colocar obstáculos em nosso caminho", continuou Zardan.

O sentimento é o mesmo para uma ativista feminista em Herat (oeste): "Está fora de questão que as mulheres percam seus direitos e para isso temos que ser corajosas. As ativistas nos dizem que faremos o melhor para que nossa voz seja ouvida”, explica à RFI. A ativista feminista Herat diz que as mulheres devem "continuar os protestos e mostrar o que podem fazer" contra o Talibã. 

Esportistas na mira

Entre as mulheres afegãs, as esportistas são particularmente visadas, porque o esporte tem sido uma ferramenta de considerável emancipação para grande parte delas. A nadadora Helena Saboori, que faz parte da Federação Nacional de Natação do Afeganistão, fez um testemunho por escrito: "Não saio de casa desde que o Talibã tomou a cidade".

“Não os vejo, mas sinto a sua presença, sinto o medo que se apodera de mim, que me enche de ansiedade: é como um monstro ... E eu me sinto um ratinho", escreve ela. "Quando assisti aos vídeos do Talibã entrando no centro da cidade, fiquei chocada. Mas também disse a mim mesma que nunca desistirei, que continuarei a nadar e me tornarei ainda mais forte do que antes. Não sei como ou quando, mas tenho certeza que vai acontecer, que estarei melhor do que antes". 

Mulheres afegãs em um evento do Dia Internacional da Mulher, na província de Bamiyan, em 8 de março de 2021.
Mulheres afegãs em um evento do Dia Internacional da Mulher, na província de Bamiyan, em 8 de março de 2021. © AFP - WAKIL KOHSAR

Primeira prefeita

O lugar da mulher na política também está comprometido. Como a primeira e mais jovem mulher afegã a servir como prefeita no país, em Maidan Shar, Zarifa Ghafari se mudou para a Alemanha ao sentir que sua vida estava em perigo. “Minha família e eu seremos a voz de todas aquelas que não podem mais trabalhar, que não podem mais levantar a voz”, resumiu ela à RFI.

Zarifa Ghafari diz que busca a voz de "mulheres afegãs silenciadas": "Vamos falar pelos 99% das mulheres enfurnadas em suas casas que não podem mais levantar a voz". 

Artistas em perigo

As artistas também temem estar entre as primeiras a serem atingidas pela volta do Talibã e muitas já começaram a destruir suas obras e qualauer traço que as ligue ao mundo das artes. A artista e ativista afegã Rada Akbar conseguiu chegar a Paris, mas nem todas as artistas afegãs tiveram a mesma sorte.

“Algumas artistas afegãs que conheço não puderam ser incluídas em uma das listas de retirada e estão presas no aeroporto. Elas estão com muito medo, pois o Talibã anunciou que não autorizam nem a música nem a arte. É por isso que todas entram em pânico e destroem suas obras, documentos ou qualquer coisa que possa colocá-las em perigo, explica Rada Akbar. "Mas o Talibã vem coletando informações sobre mulheres artistas há meses por meio das redes sociais."

“Mandei alguns de meus trabalhos para o exterior, mas muitos ainda estão no Afeganistão, sei que o Talibã os destruirá. Foi muito difícil ser uma artista no Afeganistão, exigindo muito tempo e esforço. Perder tudo assim me quebra. Mas prometi a mim mesma que não vou deixar de fazer ouvir a minha voz e que vou continuar fazendo o meu trabalho ”, continua, decidida.

Ameaça dupla contra as cerca de 300 juízas

Embora cerca de 300 mulheres servissem como juízas antes de o Talibã assumir o poder, elas agora vivem com medo de serem processadas. A RFI recebeu o testemunho de uma jovem magistrada que quis manter o anonimato. Depois de 10 anos na profissão, tendo trabalhado em Mazar-I-Sharif e Balkh e como chefe de um tribunal de menores, ela também lutou contra a corrupção no país.

Mas, como muitas de suas compatriotas, ela só tem um desejo agora: partir. "Fui um exemplo para muitas meninas no país que diziam a si mesmas: 'Eu também posso ser juíza um dia'. O que é realmente difícil para mim é que o Talibã primeiro nos ameaçou à distância e agora eles assumiram o controle das instituições", explica.

"A outra ameaça vem dos prisioneiros que sentenciamos e que foram libertados pelo Talibã. Dois dias atrás, o porta-voz do Talibã disse que as mulheres não poderão mais servir como juízas. Este é o principal motivo pelo qual eu quero deixar o país", relata.

História

Foi nas décadas de 1960 e 1970 que as mulheres afegãs experimentaram um primeiro período de emancipação de um sistema tradicional muito arcaico que as mantinha completamente sob o domínio masculino.

Mas guerras e conflitos sucessivos complicaram essa emancipação. Primeiro, a intervenção soviética de 1978 a 1992, depois a guerra civil entre as diferentes facções de 1992 a 1996 e, em seguida, a tomada do poder naquele ano pelo Talibã.

Este último impôs um regime muito severo, especialmente em relação às mulheres que, então, perderam todas as formas de liberdade e direitos e se encontraram totalmente sujeitas a uma visão arcaica e ao poder dos homens.

A intervenção da OTAN em 2001 pôs fim ao poder do Talibã no Afeganistão, mas os extremistas iniciaram uma guerra para reconquistar o território, ao mesmo tempo em que surgiram várias iniciativas de desenvolvimento que permitiam às mulheres se libertar e ter acesso à educação, saúde, vida social e política.

Como a maioria da população afegã é jovem ( a idade média é de 19 anos), muitas mulheres jovens vivenciaram apenas esse período e aspiram a mais autonomia e melhor qualidade de vida, principalmente para aquelas que vivem no campo e em grandes dificuldades, dependentes dos homens e forçadas a se casarem.

Mas a partir de 2015, a OTAN, que não via solução militar para o conflito, começou a se retirar gradualmente. A retirada total das forças estrangeiras ocorrerá em 31 agosto de 2021.

Em 15 de agosto, o Talibã retornou a Cabul após ter reconquistado grande parte do território diante de uma parte da população totalmente desesperada, tentando escapar. As mulheres afegãs estão totalmente devastadas, e as instituições internacionais estão alarmadas por suas vidas e liberdade, que agora estão seriamente ameaçadas. O Afeganistão é, mais do que nunca, o país mais perigoso do mundo para as mulheres.

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