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O Mundo Agora

Coronavírus traz retorno de guetos e “enjaula” milhões de cidadãos

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A pandemia global do COVID-19 escancarou a dura realidade dos próximos anos: a falta de governo. Até agora só se falava em “governança”: como administrar os desafios do nosso mundo globalizado, à medida que vão surgindo. Ninguém quer uma autoridade planetária. “Governança” é sobretudo um projeto tecnocrático, pilotado por peritos de várias disciplinas que definiriam soluções racionais para as questões que vão aparecendo.

Mulher caminha em uma rua deserta de Milão neste domingo, 15 de março de 2020.
Mulher caminha em uma rua deserta de Milão neste domingo, 15 de março de 2020. REUTERS/Daniele Mascolo
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A contraparte seriam as instituições multilaterais e suas agências especializadas, onde os Estados nacionais cooperariam para implementar as receitas dos técnicos. Só que faltava um ingrediente central: quem tem legitimidade – ou força – para decidir quando, onde e como? Isto é: cadê “governo”?.

No mundo global não há um governo tomando decisões na hora do “vamos-ver”. O COVID-19 mostrou que todos estamos ameaçados, e que a solução é apelar para os governos nacionais. São eles que possuem os meios e força política para impor medidas drásticas aos cidadãos. Só que os vírus, a urgência climática, os desafios das novas tecnologias ou as crises econômicas gerais, não respeitam fronteiras.

As autoridades soberanas podem tentar conter, mas não têm condições de resolver as ameaças. Para problemas globais, a resposta também tem que ser global. Apesar de ser a única solução atual, essa situação de fragmentação do poder de decisão pode até ser contraproducente.

O governo autoritário chinês levou quase dois meses negando a epidemia em Wuhan e punindo os médicos e internautas que alertavam para o perigo, para depois apelar para confinamentos em massa. Resultado: o vírus se espalhou mais rápido para os vizinhos e o resto do mundo.

Para Trump, vacina “só para os Estados Unidos”

A administração Trump quer comprar uma pequena empresa alemã que está desenvolvendo uma vacina para poder ter acesso ao produto. Mas só para os Estados Unidos! Os egoísmos nacionais estão à solta. Mas o cada um por si só faz piorar o quadro.

Não há dúvida de que Pequim acabou publicando – com atraso – os resultados das pesquisas sobre o vírus e que a cooperação internacional dos biólogos conseguiu desvendar os mistérios do COVID-19 em poucas semanas. Um recorde histórico. Só que até essa façanha dependeu da boa vontade dos governos de alguns países. Boa vontade que está permanentemente ameaçada por considerações de política interna ou de velhas rivalidades interestatais.

Os grupos humanos sempre precisaram inventar bodes expiatórios em caso de ameaças generalizadas. E os nacionalismos mais ainda. Numa economia e sociedade cada dia mais globalizadas, a tentação é grande de se fechar dentro de fronteiras ilusórias para escapar da aceleração nas mudanças de nossas maneiras de viver, produzir, consumir e se comunicar.

Ainda mais quando uma pandemia provoca o pânico em populações inteiras que acabam até implorando por governos autoritários e medidas rápidas e duras. Sem pensar que enclausurar-se dentro de um território nacional é só o primeiro passo para isolar regiões, cidades e bairros dentro desse espaço.

Renascer de guetos

O perigo do coronavírus é o renascer dos guetos, enjaulando milhões de cidadãos. Uma espécie de nova Idade Média ingovernável no meio do desespero geral e alimentando a possibilidade de uma catástrofe para toda a humanidade. É só imaginar uma política de “Mateus primeiro os teus” para as questões climáticas ou para a gestão da economia global.

Só que estamos muito longe de um governo global que tome decisões para o mundo inteiro. Melhor assim: seria provavelmente uma ditadura planetária funcionando na base de algoritmos e inteligência artificial. Um autoritarismo “científico” que só toleraria um único ponto de vista considerado como “legítimo”.

Boa parte da humanidade ainda quer salvar as liberdades individuais. Mas em vez de chorar o velho multilateralismo perdido, está na hora de inventar seriamente novas instituições democráticas adaptadas à essa civilização global que desponta. Que não se contentem só em administrar, mas tenham também instrumentos e poder de decisão.

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