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O Mundo Agora

Eleições "democráticas" mascaram hipocrisia autoritária

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O cinismo do anúncio oficial das próximas eleições presidenciais na Síria é um escárnio a qualquer processo político minimamente democrático. É absolutamente impossível organizar um pleito com algum ar de respeitabilidade num país completamente destruído pelos bombardeios contínuos do próprio governo e uma guerra civil bárbara em andamento, com 200.000 mortos e mais de dois milhões de refugiados.

O presidente da Síria, Bachar al Assad, deve se candidatar para um novo mandato nas eleições de 3 de junho de 2014.s do poder, em 21 de abril de 2014.
O presidente da Síria, Bachar al Assad, deve se candidatar para um novo mandato nas eleições de 3 de junho de 2014.s do poder, em 21 de abril de 2014. Reuters/SANA
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Aceitar essa farsa sangrenta é simplesmente insultar qualquer tipo de processo eleitoral. Na verdade, é um paradoxo: ou bem as eleições já estão completamente desvalorizadas no mundo inteiro ou bem a ideia democrática se impôs de tal maneira que até os déspotas mais cruéis se sentem na obrigação de legitimar o próprio poder pela via eleitoral, nem que seja só num simulacro de eleição.

Exemplos não faltam

Pelo visto, essa desfaçatez do regime de Bachar Al Assad representa só mais um prego no caixão dos ideais democráticos. Outro foi o referendo na Crimeia com tropas russas de ocupação e a campanha por outros referendos feita por grupos armados no leste da Ucrânia, sem nenhuma possibilidade de campanha contrária.

A mesma coisa com a recente eleição completamente manipulada na Argélia para manter no poder um presidente fantasma, inválido e incapaz até de articular mais de duas ou três frases por causa de um derrame cerebral. Sem falar nas eleições na Venezuela, onde os distritos eleitorais foram todos redesenhados para favorecer o governo e onde a oposição não tem acesso à mídia de massa. E quando por acaso ganha algum pleito, não leva.

Bota nessa panela boa parte das eleições nos países africanos e alguns asiáticos, a próxima farsa eleitoral no Egito e as velhas ditaduras cubana ou norte-coreana que fazem questão de promover escrutínios na base do partido único. O guisado que sai daí tem aquele gosto ruim da hipocrisia autoritária de sempre.

Valores democráticos?

O paradoxo desse princípio de século XXI é que o mundo inteiro celebra os valores democráticos, até os ditadores ou aprendizes de ditadores. Não são muitos aqueles que defendem regimes abertamente totalitários. Os mais favoráveis a governos autoritários, como por exemplo o Partido Comunista Chinês, inventam o monstrengo da “democracia com características chinesas”. Mas a verdade é que esses inimigos da democracia, que tentam esconder a cara, utilizam um macete para se justificar: democracia é o voto e ponto. Se o povo votou, o governo é legítimo e pode impor o que quiser até a próxima eleição. E vale tudo para ganhar o pleito. Como se eleição fosse o único critério para definir se um processo político é democrático ou não.

Esquecem, claro, que eleições sem separação de poderes, respeito dos direitos individuais do cidadão e das prerrogativas da oposição, liberdade de organização e de opinião, acesso livre aos órgãos de comunicação, justiça eleitoral independente, debate aberto e aceitação – e até promoção – da alternância política, são absolutamente essenciais para que uma votação possa ter legitimidade.

Além do mais, com a globalização, o aparecimento das redes de mídia social e as sondagens de todo tipo cada vez mais sofisticadas, não há Estado democrático que possa se sustentar só com uma eleição geral cada quatro ou cinco anos.

Eleitores

Hoje, nenhum governo, nem os mais poderosos, tem condições de controlar ou resolver por si só os problemas de suas populações nacionais. As questões econômicas, sociais ou ambientais se transnacionalizaram irremediavelmente. Os governos estão se transformando em administradores locais de uma lógica global onde os principais atores são as empresas transnacionais, os organismos internacionais ou as redes de grupos da sociedade civil conectados pelo planeta inteiro.

Os eleitores sabem disso e não estão dispostos a entregar o poder a um grupo de eleitos por vários anos sem que estes prestem contas de maneira permanente. A legitimidade democrática hoje é uma via de mão dupla. Tem que se dar nome aos bois: continuar a manipular os processos eleitorais para se perpetuar no poder não tem nada a ver com democracia. É despotismo mesmo. E não há propaganda, por mais cínica e astuciosa, que possa esconder essa verdade.
 

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